Joaquim Camburão

Texto de Toinho Castro
Para Luiz Antonio Simas


Jangada no Estado do Rio Grande do Norte, setembro de 1970. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.

Caríssimo Simas,

tomo a liberdade de te escrever esse texto por conta da leitura do seu livro, Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia (Bazar do Tempo, 2022), editado pela Bazar do tempo. 

Que viagem pelo Brasil, pelos nossos caminhos e descaminhos enquanto povo em permanente formação. Lembrei dos versos de Haiti, de Gil e Caetano:

E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula

Lendo seu livro, os sortilégios, mandingas, orações, receitas, encontros, visagens, percorri novamente minha infância, minha família, que se constituiu e se espalhou, unida pelo fio, tênue, às vezes, da fé. Mas sobretudo unida pela festa, pelo terreiro e pelas histórias que vivemos e aprendemos a contar. Que livro bonito e nosso.

Mas o que me traz até essas linhas que escrevo, foi São Longuinho, de quem puder ler o que se sabe e o que não se sabe, o que se inventou, imaginou ou adivinhou de sua vida e seu martírio, do destino de sua lança. 

Moro no Rio de Janeiro desde 9 de fevereiro (Dia do Frevo) de 1997, quando desembarquei no Galeão vindo do Recife. E com a passagem da vida e dos anos, fui me acostumando com o chamado a São Longuinho, a fim de encontrar objetos perdidos, bem como com o três pulinhos, para agradecer ao Santo ao fim da busca bem sucedida. Recordo um amigo, que tendo perdido a chave de casa nas areias da praia do Leblon, de madrugada, e levemente embriagado (Talvez um pouco mais que isso), rogou a São Longuinho e prometeu-lhe mil pulinhos! Vagando pela praia, sem esperança, deu com a chave e cumpriu a oferenda inflacionada dos mil pulinhos.

E digo que tive que me acostumar porque cresci com outro rito, muito distinto. Em nossa casa, para encontrar o que quer que se perdesse, invocámos Joaquim Camburão, a quem agradávamos, ao encontrar o que procurávamos, jogando-lhe a esmo algumas moedas. Não havia nenhum chamado específico, nenhuma oração. Apenas pedíamos: Joaquim Camburão, me ajude a encontrar tal coisa, isso ou aquilo. Costumávamos jogar as moedas pela rua, onde possivelmente acabariam encontradas, talvez, por alguém que precisasse delas.

Joaquim Camburão, pois, era como um membro secreto da família. Não lembro de ter visto quem quer que fosse apelar a ele em outros lugares, outros núcleos familiares, cidades, etc. Parecia-me, porém muito natural, e eu acreditava que todos recorressem a Joaquim Camburão. Até chegar no Rio e dar com São Longuinho. Senti-me possuidor de um mistério. Cúmplice de uma sociedade secreta.

Quando li seu livro e esbarrei com a história de São Longuinho, tudo isso me veio ao Juízo. Liguei pra minha irmã e perguntei-lhe, afinal, de onde vem essa história de Joaquim Camburão. Consultando os mais velhos, disse-me ela que tratava-se de um pescador, da região da praia de Touros, no Rio Grande do Norte, de onde vem minha linhagem maternal, que procurava por pessoas perdidas no mar. Ele mesmo, por fim, teria desaparecido, em meio a algum temporal, e a partir de então todos dali passaram a chamá-lo quando precisavam encontrar algo que se perdera.

Quando criança, a imagem de Joaquim Camburão me assombrava. Podia imaginar seu vulto, uma vez que o chamávamos, revirando a casa para revelar as coisas perdidas. Havia um assombro e também um alívio. Algo de protetor, de espírito do lar, cristalizava-se na imagem de Joaquim Camburão. E até hoje o invoco com solenidade, com respeito, sempre, antes de pedir, me certificando de que tenho as moedas para a oferenda.

Até hoje, enquanto te escrevo, numa casinha em Ilhabela, para onde vim passar uma mini-férias, com seu livro debaixo do braço, me pergunto quem mais saberá de Joaquim Camburão. O quanto desse rito se perdeu ou vai se esvaindo enquanto os mais velhos vão indo embora. E penso: que ele mesmo não se perca de novo. Invocá-lo sempre, para encontrá-lo.

No mais, obrigado, Simas. A leitura do seu livro foi estimulante em muitos sentidos, sobretudo nesse momento em que vivemos, e precisamos nos agarrar a quem somos.

Abraço fraterno,

Toinho Castro

Jangada no Estado do Rio Grande do Norte, setembro de 1970. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.