OCULTAMENTOS E A ESCRITA MÁGICA

A SUBLIMAÇÃO DE UM MUNDO FEMININO

Texto de Ana Andreiolo


Ana Andreiolo é artista multidisciplinar, designer gráfica, astróloga e mestranda em artes visuais no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Aluna da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO
A presente produção artística se desenvolve a partir da possibilidade de revelação de um mundo feminino. Com objetivo de abrir fissuras no pensamento dominante que nos forma culturalmente, tendo como pano de fundo um evento enigmático e paranormal de uma carta psicografada por uma mulher analfabeta, nascida na década de 30, no interior do estado do Rio de Janeiro, Brasil.

PALAVRAS-CHAVE
Fenômeno. Invisibilidade. Escrita. Gesto.

OCCULTATIONS AND MAGIC WRITING
THE SUBLIMATION OF A FEMALE WORLD

ABSTRACT
The present artistic production develops from the possibility of revealing a feminine hidden world. In order to open fissures in the dominant thought that culturally shapes us, against the backdrop of an enigmatic and paranormal event of a psychographic letter by an illiterate woman, born in the 1930s, in the countryside of the state of Rio de Janeiro, Brazil.

KEYWORDS
Phenomenon. Invisibility. Writing. Gesture.

Figura 1 – Ana Andreiolo, Sublimação, 2021, Zipper Galeria, São Paulo. Fonte: A Autora.

A gente combinamos de não morrer
(EVARISTO, Conceição)

Devo a conjunção de Júpiter e Urano o inusitado acontecimento do ano de 1983. O encontro planetário inquietava o céu e relampejava mentes. Foi em uma tarde de domingo que uma mulher iletrada, nascida e criada num pequeno distrito escondido no estado do Rio de Janeiro, escreveu a próprio punho pela primeira e única vez, onze anos após o suicídio de seu sobrinho. A escrita automática e mágica continha uma mensagem do falecido.

Inesperadamente empunhada de lápis e papel, enquanto o apito do vapor da panela de pressão anunciava o aroma da feijoada que adentrava a sala, testemunhas oculares acompanhavam o acontecimento sobrenatural que atuava sobre aquela mulher. A senhora psicógrafa escreveu, apesar da inexperência e sem conhecimentos prévios, performando e produzindo uma ação impulsiva da linguagem corporal que pretendia ir além do pictórico para a manifestação de uma dimensão espiritual através do corpo.

Fez-se a importância do gesto, traçado por linhas verticais, horizontais, curvas, oblíquas, obtusas e agudas que formaram palavras. Contudo, acontecia ali, para além do significado do texto, a emancipação da estreiteza do pensamento governado pela razão. A desrazão daquela mulher, dissolvida num momento epifânico, denunciava a todos que a contemplavam a cultura agráfa na qual ela estava inserida. Evidenciava, à luz do pôr do sol que refletia por toda sala, seu mundo, até então, ilegível. Escreveu sem controle, sem preocupação estética, sem consistência gramatical, num estado transitório e misterioso que reside entre o adormecer e o acordar.

Revelações de um mundo misterioso, calado e ocultado, apareciam através do gesto mágico, traduzido em movimentos largos, rápidos e livres. Cada letra desenhada cobria com folga e extensão abundante a superfície do papel, numa espécie de tentativa de fuga ao seu condensamento social.

Figura 2 – Fotografia fac símiles sobrepostos das 3 folhas da carta original, 1983. Fonte: A autora.

As 3 folhas escritas, frente e verso, marcaram a profusão da fratura causada pelo acontecimento, onde a linguagem escrita cedeu lugar a ação gestual. Disse, certa vez, como relatado na Form Magazine (1916), o artista e ocultista Austin Osman Spare, famoso por sua técnica idiossincrática da relação entre consciente e inconsciente, que riscos automáticos de linhas entrelaçadas e enroscadas permitem que o germe de uma ideia da mente inconsciente se expresse, ou pelo menos, seja sugerida à consciência. Quando a mão trabalha livremente, correndo deliberadamente sobre a superfície, descobrem-se formas produzidas num estado de distração que tornam as sensações visíveis.

A carta se apresenta como um tipo de caligrama, contudo também deixa de sê-lo. Carrega em si a forma e o intuito de representar algo do reino do irrepresentável, utiliza o recurso caligráfico como representação figurativa de uma forma não objetiva e se torna uma espécie de poesia visual, que distribui a propriedade plástica de seus elementos com firmeza e vigor nítidos, acrescida da abstração de sua própria materialidade.

O confronto entre a formalidade da caligrafia com a dimensão subjetiva que aquela espacialidade ganhou, se deu na distribuição despreocupada de formas, que ultrapassavam um subentendido padrão de pautas. Como em um espaço sem limites, escrita em quantas folhas foram necessárias, num ato primordial, recebia toda a atenção de suas testemunhas oculares. A importância da ação revelou ali um potente ato criativo, que consistiu a matéria com qualidades primárias visuais, olfativas e táteis, preenchendo a conformidade de um espaço, essencial para sua materialização: a ocupação de um corpo.

No acontecimento, entre o objeto-carta e sua escritora, algo se tornou experiência e fenômeno passível de um processo de investigação e tentativa de decodificação do enigma como uma maneira de enxergar esse mundo feminino ocultado.

Ler um mundo oculto requisita abandonar a palavra que descreve o mundo visível, pois a carta é alguma coisa a mais que as palavras. Existe algo não dito, mas está lá. No silenciamento do texto, um mundo silenciado aparece.

Aqui, ampliar a palavra até que desapareça se apresenta como ato de prática artística. Através da técnica de ampliação computadorizada, quando a resolução estoura e o desfoque acontece, se dá a aparição de uma outra imagem disforme. Uma vez transmutada de sua significação, esse algo outro se torna visível. Aproximar-se das hastes e curvas das letras, esticá-las ao máximo, até que seus traços sejam abandonados pela forma e se esvaziem. Falar da palavra sem ela.

Alterar a matéria para dispersar a linguagem verbal e outros significados sejam revelados em associações mais livres. Em pensamentos vaporosos, produzindo pequenas percepções nessa passagem do linguístico para o não-verbal e vice- versa. Estas sensações mínimas que passeiam no limiar do degradê tonal, entre o gesto e o verbo. Essa interseção que apela aos sentidos a buscarem a significação verbal ausente.

A busca pela experiência do fenômeno da escrita paranormal vem pela turbidez das palavras da carta descoladas de significado e transmutadas na mágica aparição da mancha. Assim, palavra formal e mancha disforme coabitam o mesmo sistema: as linhas nítidas de cada letra e os borrões espectrais foram produzidos pelo mesmo gesto.

Ampliar é trazer mais pra perto, tornar maior, alargar, borrar. Fazer surgir do contorno manchas dispersas que se articulam e que se assemelham a coisa e a coisa nenhuma. Revelar manchas de cor, sensações tonais e outras visibilidades. Manchar a letra e turvar a visão dissolvem o sistema da razão para o inconsciente se expressar.

Figura 3 – Imagem digitalizada e ampliada fragmento da carta original. Fonte: A Autora.

Então, sublimar a mancha. Fazê-la transpassar de um estado a outro, transferi-la a quente, pelo calor, torná-la vapor. Neste novo estado de existência manchar sorrateiramente e penetrar a trama de um tecido leve e translúcido pela técnica denominada sublimação. A transferência sublimada ganha nova escala, maior, mais próxima do tamanho de um corpo humano, em uma referência a imagem que se entranhou no tecido do Santo Sudário.

Sublima-se uma aparição fantasmagórica, revelada por impregnação vaporosa em superfície têxtil esvoaçante. Depois, exposta, estabelece outras relações. O ambiente expositivo decorre de nova iluminação e correntes de ar por onde bate o vento que sopra o fantasmático tecido voil sublimado. Foi assim também as cortinas que ventavam na sala onde aconteceu o evento da escrita mágica.

Os corpos dos espectadores que passeiam pelo ambiente de exposição ora aproximam seus corpos ao tecido manchado e sublimado, ora distanciam e retracionam à nitidez e legibilidade da palavra. O ajustamento do olhar em um corpo caminhante que viaja pelo espaço físico, desfoca em aproximação e ganha foco em passos de afastamento. Ao se deslocar em uma média de 14 a 15 metros de distância do tecido sublimado, o observador vê a palavra similar ao tamanho original da carta. Esta distância pode transcender a capacidade do espaço físico, pode não caber no ambiente expositivo e ele precisa se imaginar para além dali, em outro lugar, onde ele não pode estar. Como em uma experiência de percepção projetiva, onde se percebe estar fora do próprio corpo, tentando alcançar esta dimensão extrafísica distante.

O caminhar que se ajunta gradativamente desfaz o traço e se perde da forma como quem se perde da razão. Perder-se da razão nubla o pensamento. Desta aproximação surge o fantasmático mundo daquela mulher de escrita mágica. A mancha sublime é uma aparição que manifesta o vivo, apresentada através do rubor, do calor da tecnologia utilizada em sua transferência.

Na poética do sublime é exaltado o supremo, a mensagem ultraterrena, que transita do contorno lúcido ao fantástico magistral de um outro mundo e os traços apenas definidem o indefinível.

Até aqui, vagueou-se da desincorporação do definido e da incorporação do indefinível, feito a mão rugosa daquela senhora, que de repente encerrou sua escrita, largou o lápis e se deu conta do corpo sentado na poltrona de couro verde na sala de estar e assim retornou.


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