Nascido em tempos de pandemia, o livro de estreia de Catharina Azevedo, “deixe o bando correr selvagem”, tem como proposta registrar a tentativa de apreender a descoberta do mundo, do corpo e da cidade de Salvador (BA). Publicada pela Mormaço Editorial (2022, 80 pág.), a obra conta com o posfácio assinado pela compositora, cantora, poeta e também soteropolitana Hosanna Almeida.
E é com esse belíssimo livro que Catharina Azevedo nos chega, aqui no inbox feliz da Kuruma’tá, desde Salvado, de onde escreve seus versos e desafia a tessitura do mundo com palavras!
Seja bem-vinda, Catharina, nova habitante do território poético da nossa Kuruma’tá!
A expansão, essa vontade da descoberta do mundo, é o tema central do livro. Esse desejo pelo ‘sim’. Mas existem também alguns ecos da infância, que eu acho um período fantástico, em que tudo se pode, e você tem essa tapeçaria rica em imagens e associações. Para mim, o livro se desenrola entre o ‘eu’, a ‘casa’ (ou o umbigo) e o ‘mundo’.
— Catharina Azevedo
(sem título)
Talvez a verdadeira redenção
sejam esses dedos que se estendem
do outro lado da ponte
de uma página em branco.
Uma tela.
Buscamos com candura
e um quê de uma aceitação agridoce
nos tocar.
Esse toque, tão ínfimo e breve,
que nada pede ou explica,
sabe desfazer-se
no branco vão dos segundos.
Esse ínfimo toque:
talvez o verdadeiro roteiro
da peregrinação incessante.
Nele, uma revelação
surgida no escuro útero do mundo.
Desço a Carlos Gomes
Os pés que construíram essa cidade
são os mesmos que agora vejo
de rotos traços,
suor e calor misturados nas pedras.
Eu desço a Carlos Gomes.
É preciso amar também as pedras,
antes ou depois dos homens.
Pensos nos jasmins de Borges:
os bagos de uva devem estourar na língua,
escorrer na língua,
abraçarem-se na língua
e eu desço a Carlos Gomes.
Fazer arte é bobagem, digo
mas, todo o resto,
também bobagem.
A pele que se enruga ao vento,
os livros que carrego,
tudo a salvo e são.
Os 42 degraus da Lapa,
(ausência de
pressa) escrever
rápido
Não querer pensar.
Parece querer dizer algo,
essa multidão dentro de mim.
Op. 69, nº1
Como Leonora Carrington,
extraio minhas cores dos pulsos.
Índigo, viscoso,
retrato de lua e prata.
Sou uma coruja alquimista.
Em alguma curva do tempo,
eu me deito, escondida
Trapezistas, amores perdidos
— meu mundo é repleto
E rico como
aquarela que se dissolve.
Bailarinas, julietas,
olhares trocam carícias
Digo sim ao eterno,
deus não me intimida.
(sem título)
Passar como água sobre as pedras,
seu barulho e seu cristal:
há muito renuncio ao fogo.
Há em mim qualquer coisa
(um véu de prata iridescente)
de nada, seguindo
ao encontro de qualquer terra
que se arrepie ao contato.
Algo de puro, frio e azul.
Se eu sequer tivesse nome —
queria não tê-lo.
O que colore o mar
é só o céu que se espelha.
Catharina Azevedo nasceu em Salvador, em 1997, e é a segunda das três filhas de sua mãe. Cursa atualmente o Bacharelado Interdisciplinar em Artes, na Universidade Federal da Bahia. Gosta de ler e de escrever desde sempre, isto é, desde que começou a entender o que eram as letras e como elas permitiam a contação de histórias. “deixe o bando correr selvagem” (Mormaço Editorial, 2022) é seu primeiro livro de poemas.