Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA
Poeta de hoje: Yara Fers
Yara Fers nasceu em Ribeirão Preto (SP) e mora na Bahia. É fundadora da Editora Arpillera, de livros artesanais. É editora de comunicação do Portal Fazia Poesia. Possui graduação em Comunicação Social e Especialização em Teoria da Literatura e Produção Textual.
Publicou os livros de poemas: Sádica sílaba (Editora Patuá, 2021), Desmecanismos (independente, 2021), Haicactos e mandacarus (independente, 2022), Meio magma, meio magnólia (Editora Penalux, 2022). Anatomia de um quase corpo (independente, 2022) é seu primeiro romance. Também publicou os infantis Dinossauros e carros voadores (2022); Brincar de haicai (2022); e Todos os sons (2023), os três pelo clube Mini Mega Leitor.
Foi premiada em concursos: 1° Lugar E-book narrativa longa e 1° lugar E-book narrativa curta no Prêmio Book Brasil 2022; 2° Lugar autora do ano Prêmio Book Brasil 2022; Finalista categoria Capa no Prêmio Candango de Literatura 2022, 3° Lugar Prêmio Off Flip 2022, 5° lugar no Prêmio Barueri de Literatura 2021, 2° Lugar no Slam Momento Lírico da Educa Rap UFRB 2022, 4° lugar Concurso Tâmaras 2021, entre outros.
Participa dos coletivos Escreviventes, Poexistência, NuaPalavra e Papel Mulher.
O que te inspirou a começar a escrever?
Meu primeiro poema foi escrito aos 8 anos de idade, por influência do meu pai, que também era poeta, mas nunca conseguiu publicar livro. Ele foi, sem dúvida, minha primeira referência. E comemorou muito quando viu meu primeiro poema, anunciando ao mundo que eu era poeta. Então, a partir daquele momento, continuei sendo.
O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias?
Eu sempre faço atividades que estimulem minha criatividade, como a participação em oficinas, em provocações para escrita dos coletivos de que faço parte, ouvir música, seguir e visualizar obras de artistas plásticos pelo instagram e passeios ao ar livre. Tudo isso me faz ter mais disposição e ideias para a escrita.
Seu maior sonho como escritor(a)?
Já tive muitos sonhos. Publicar meu primeiro livro. Viver de escrita e literatura. Publicar meu primeiro romance com uma história que eu precisava contar. Consegui realizar estes primeiros sonhos. Hoje eu almejo vencer um prêmio literário importante. Mas tudo isso tem a ver com apenas um sonho: o de ser lida, de fazer as palavras chegarem a muitas pessoas. Acho que esse é de fato o grande sonho.
Assunto preferido de escrever?
Eu tenho alguns temas obsessivos, acredito que toda pessoa que escreve tem. Alguns deles são: o contraste corpo x máquina, o corpo-mulher enfrentando o mundo, a escrita sobre a própria escrita (metalinguagem).
Um elogio para sua própria escrita?
Minha escrita venceu alguns obstáculos: internos meus, sociais/históricos, do mercado editorial. Venceu também o mito de que escrevemos de forma solitária, pois caminho junto com muitas outras autoras como eu nos coletivos de escrita, que me fortalecem a cada passo. Minha escrita é, por tudo isso, subversiva e coletiva.
Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos?
Tenho 8 livros publicados. São 4 obras de poemas: Sádica sílaba (Editora Patuá, 2021), Desmecanismos (independente, 2021), Haicactos e mandacarus (independente, 2022), Meio magma, meio magnólia (Editora Penalux, 2022). Tenho um romance em prosa poética: Anatomia de um quase corpo (independente, 2022). Também publiquei os infantis Dinossauros e carros voadores (2022); Brincar de haicai (2022); e Todos os sons (2023), os três pelo clube Mini Mega Leitor.
Tenho um livro de poemas pronto que deve sair este ano pela Editora Arpillera, que fundei junto com meu companheiro de vida Thiago Gatti e pela qual publicamos livros artesanais. E estou escrevendo um novo romance, que espero também concluir e publicar este ano.
Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita?
Em geral eu me movo para a escrita a partir de situações que me incomodam, dores, revoltas com o mundo. O que me leva a muitos poemas com temas sociais. Mas também tenho poemas de pausa, de contemplação, de conexão com a natureza, que é algo que faz bem a mim e à minha escrita.
Qual dos seus poemas mais te define?
fluida
Eu queria ser sólida.
Raiz. Terra.
Mas desde a nascente
sou líquida.
Enraízo-me doce
em afluentes e enseadas
que brotam lentos,
leitos venosos e arteriais.
Já inquietos,
meus rios vazam
por olhos, útero, punhos.
Meus (a)braços líquidos
penetram horizontes:
músculos hidráulicos,
dedos e mãos tentaculares
alimentam margens,
abraçam mundos.
E, finalmente,
se lançam aos mares.
Nisto sangro e me salgo.
Mas a dor de minha água
é também subterrânea,
freática,
untando grutas
e átrios do peito,
a delinear estalactites
que perfuram ecos,
gota a gota.
Eu queria ser sólida.
Sou, no máximo,
vítrea
a baixas temperaturas.
Queria meu corpo
dizendo rocha.
Mas o que sou
(incoagulável)
diz água.
Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você?
Não sei se mais fácil, mas a mais gostosa é quando o livro é lido, quando há pessoas que se identificam com o que está escrito, que se emocionam.
A mais difícil é decidir quando o livro está pronto, pois eu releio e edito muitas vezes.
Qual sua obra favorita de outro autor(a)?
Difícil escolher uma. Mas eu colocaria 4 entre os mais importantes “Poemas da recordação e outros movimentos”, da Conceição Evaristo; “Grande Sertão: Veredas”, do Guimarães Rosa; “Poesia completa” do Manoel de Barros; e “O mundo desdobrável”, de Carola Saavedra
Um livro de Yara Fers
Nome da obra?
Desmecanismos
Quando e em qual editora foi publicada?
Foi uma publicação independente, em formato artesanal, bordado e costurado à mão, que lancei em agosto de 2021. Depois publiquei uma versão em e-book.
Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual?
Esse livro traz poemas que colocam em contraste os funcionamentos da palavra, do humano e da máquina, o orgânico e o mecânico da vida.
As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso?
O livro Desmecanismos possui estas 5 partes:
disfuncionalidades
acionamentos do verbo
funcionamentos orgânicos
desengrenagens do mundo
deslimites
A primeira é composta de apenas um poema introdutório.
A segunda, acionamentos do verbo, traz os funcionamentos da palavra, com poemas metalinguísticos.
A terceira parte, funcionamentos orgânicos, traz a mecânica dos corpos, sejam humanos, animais, celestes, o nosso corpo se misturando aos organismos vivos do mundo.
A quarta parte, desengrenagens do mundo, contém poemas da mecanização do mundo, do universo do trabalho, das máquinas, da exploração humana.
A última parte traz apenas um poema que coloca todos esses funcionamentos em contraste e em choque.
Fiz isso para que a pessoa leitora entre nesse mesmo conflito e se salve da artificialidade e mecanização do mundo por meio da poesia.
O que te incentivou a escrever esse livro?
Os poemas partem da minha vivência, trabalhando por 11 anos na fábrica. E, a partir disso, mostro como o contato com a arte e a natureza foi um contraponto que me salvou desta mecanização da vida.
Esse mesmo contraste reaparece no meu romance Anatomia de um quase corpo.
É possível destacar uma poesia que mais se assemelha a seu cotidiano?
Hoje já não trabalho na fábrica, em outros momentos os poemas mais voltados a isso representariam melhor. Mas hoje, creio que seja este, mais voltado à escrita.
vulcânica
mergulhar a caneta no vulcão
sorver o magma
pousar a ponta na face da folha
despejar o núcleo ígneo do poema
solidificar-se
A sequência dos poemas conta alguma história?
Sim, de certa forma conta um pouco da minha história. Esses funcionamentos todos se encontrando são os meus contrastes.
Existe algum posicionamento político ou cultural na obra?
Sim. O corpo em atrito com o mundo é político. O corpo que resiste aos padrões produtivos impostos é político. O corpo que, em sua natureza humana, orgânica, poética, enfrenta a máquina é político. Tudo isso está nos versos desse livro.
Qual a relevância dos personagens implícitos/explícitos da obra?
Ter esses corpos que se façam poesia, que se conectem com a natureza e o humano e se contraponham à mecanização da vida é necessário, é o que pode mudar o mundo.
Qual a poesia mais marcante desse livro?
O poema de abertura, que convida quem lê a refletir sobre esses funcionamentos:
disfuncionalidades
.
a metalinguagem
é um tipo de egocentrismo do artista.
debruçar-se sobre seu próprio fazer poético.
apropriar-se de suas ferramentas.
expô-las.
abrir o próprio ventre, dizer a quem lê:
isto é o que sou.
e sou sempre palavra.
a metalíngua poeta
quer desabotoar cortinas,
investigar nossos próprios funcionamentos,
em choque ou em síntese
com os funcionamentos do mundo.
uns chamariam de autoconhecimento.
no artista, mais se parece com autodissecação.
viva, líquida e sem anestesia.
afiamos nossas limas,
esparramamos ao chão as ferramentas e peças,
brincando com elas a céu aberto e olhos vivos.
mas isso é sobre todas as portas e carnes,
internas e externas,
que podemos abrir com elas.
abrimos a barriga do mundo,
em suas coisas vivas e mortas,
para compreender seus movimentos,
sobretudo distorcê-los.
cabe aos artistas, às crianças e aos curiosos
investigar os encaixes das peças do mundo,
reinventá-los, entortar seus membros,
subverter as funcionalidades viciadas.
os versos aqui expostos
dissecam
com igual curiosidade e subversão
a palavra, a lesma, a máquina, o caos.
são um convite:
adentre essa barriga mecânica,
compreenda como ela disfunciona,
inverta a rotação de suas tripas e engrenagens.
ouse deglutir e regurgitar os movimentos
que regem o mundo em toda a sua desarmonia.
disfuncionemos.