Ideia de apresentação – por Luciana Moraes
Entre uma realidade que existe e outras que não existem, mas que desejam vir à tona, somos convidados a imergir, navegar, explorar essa amálgama poética, num fluxo contínuo, entremeado de imagens e sons. Aqui surge uma escrita que não se resume à dor de um momento, à vinda ou ao lapso de alegria.
O livro poderia ser lido como uma teia de poemas em interlocução, ora ou outra, tendo elementos linguísticos do português brasileiro unidos a termos do tupi, maxacali, yoruba, inglês e espanhol . São linguagens que se procriam em diferentes versões de si mesmas, ora dialogando entre si, a partir do encaixe temático, ora pairando em lacunas especialmente deixadas no percurso.
O leitor poderá perceber que, a partir de cada um dos poemas (como unidades independentes, mas também intercambiáveis) é possível recomeçar uma nova trajetória de reinterpretação do estar no mundo. O desejo permanece inscrevendo o corpo como um poema infinito no coração de outra história; o poema-corpo guarda e desvela seu estado presente no espaço, no passar de páginas; seu corpo-palavra ressignificado através de outros formatos e de novas palavras ocasionalmente criadas.
Na primeira seção, vemos poemas em diálogo ecfrástico com obras diversas, o que nos mostra que a experiência interartística nos oferece muitas possibilidades de acessos, saídas, uma diversidade de enquadramentos do olhar; geração de sentidos dessa escrita dialógica. Ainda nesta seção, há uma subseção, realizada a partir da leitura crítica de Água Viva, de Clarice Lispector e seu desdobramento em diálogos ecfrásticos.
Já na segunda seção, existe outra proposta, pois os poemas procuram realçar mais o questionamento da vida diante de situações do cotidiano, “tocadas à espreita”. Desta vez, sem diálogo direto com obras artísticas, há ainda a intensa exploração dos recursos melo, fano e logopeicos. A experiência de leitura talvez possa inserir, quem a percorre atentamente, num universo de múltipla sensibilidade, até mesmo o verbo beirando o “deslimite” das expressões de um corpo sem órgãos artaudiano.
A pedra no meio caminho de Drummond, assim como a experiência de sufocamento de Kafka parecem ser resgatadas em determinados momentos, porém no sentido de querermos avançar com um outro corpo, desentranhado da pedra e das paredes, “o corpo no corpo recriando milhares”. Com autonomia em movimento, um feminino que visa estar fora do refúgio, para além de um estado asséptico.
Nessa escrita, em saltos semânticos, como uma espécie de “eterno retorno nietzschiano”, após um denso processo de 3 anos de pandemia, temos a denúncia de emoções em série – entre o passado, o presente e o futuro, de modo anacrônico, em embaralhamento – quase que ininterruptamente, buscando o centro, o eixo vital na matéria.
O “alvo grito de rapina” entrecortado nas brechas do papel talvez venha nos alertar como somos humanos e quão pouco nos realizamos nesta era viral do antropoceno, chegando ao ponto de precisarmos, de fato, ver o animismo tomar conta de nós. Nesse cenário de “eu-nosso-desmedido”, geramos novas significações às palavras, já tão surradas, em meio à vida ordinária.
O instante é extraordinário, incomensurável; mas o tempo passou e passa.
O abismo é aqui tocado, em cada instante, para alçarmos outros voos – melhores.
Quem sabe?!
Livro
Tentei chegar aqui com estas mãos é um livro de poesia cujo nome já contém uma dubiedade proposital. Tentativa de chegar com “estas mãos” apresenta uma questão demonstrativa, um desvio do óbvio. Nele, toco em temáticas paradoxais do ser humano, como o luto e a luta, a insatisfação e o desejo, por meio de diferentes tons, ritmos e (des)enquadramentos semióticos. A escrita segue em diálogo com os anos que temos vivido, porém, sob olhares diversos, como uma amálgama de sensações do corpo feminino que pulsa entre euforia, dor, lapsos e rememoração do tempo. Tive a intenção de explorar (no melhor sentido da palavra) o instante presente, desejando extrapolar a visão comum e descobrir outros sentidos para as palavras e para o caminho diário. Desse modo, escrever pode ser atuar com gestos dialógicos em várias esferas das artes (pelo saber e não saber), com intuito de sentir um tempo vívido: o “alvo grito de rapina”. E assim, principalmente por meio da poesia ecfrástica contemporânea, desenvolvo experiências estéticas com 31 obras de artes visuais, de variadas épocas. Há duas seções: “Diálogos Ecfrásticos”, com obras de Frida Kahlo, Clarice Lispector, entre outros artistas; e “Cotidiano Tocado à Espreita”.
SELEÇÃO DE POEMAS
Seção: diálogo ecfrástico
O poema a seguir dialoga com a obra O Veado Ferido (1946), Frida Kahlo
< Compenetrado olhar do Abismo>
A meta do veado alvejado
é ser mutação e desova
desencarne das flechas
numa ação Cor de Ouro
Não há beleza nem altura maior
do que suas Quatro pernas abertas
empostadas no caminho
galopando o idílico desconhecido
Ressurgindo…
Ele comporta o peso (é)
depois mais nada:
leve e sereno pu(lu)lar de páginas
Como se a chuva
__________________ se expandindo
e toda gota lavando
a dureza da fibra na Cabeça
A ferida na vida
Pausa de quem recebeu Nove
flechas rasteiras cravadas
na carcaça mais fina
gritante e certa
que pudemos
V E R
O poema a seguir dialoga com a obra Abstract Spiral Galaxies (2008), Kazuya Akimoto
Sobre atravessar o horizonte partido
Há fome desde a Antera,
onde se poliniza galáxias
Há flor de ideias na tinta espacial
chegando ao exoesqueleto e
em nosso túnel compacto roçando
claras espirais
Se palavra é gasta, sombra túmida de si
malícias negam desfibrilação de estrelas
demônio-um representante
saturação de cores invertidas num dragão marítimo
branco, pouco comum ao olho nu
Nossos pássaros inquilinos
frementes, em desvio
colisão da vida que pulsa
em nós, sem pergunta
Se o peixe feroz, informe e ilegível à claridade
Leviatã New-artífice do exício
do enredo sem rumo
cria o mundo anônimo
noite em todo o corpo, debalde,
carregando as rédeas do tempo nas compotas
de falácias
As sépalas em preto em branco contraem o passado
e assumem a sustentação de toda a flor até o estigma central
parem borboletas luzentes
mitológico sabor do vento
yvytu em zênite
tu e tal e tal e tu
formam-se tessituras de vida
Entre uma cabeça de serpente e outra
não ponderando termos
carregando em sua joia ruína
sua mortal comprovação
O poema a seguir dialoga com a obra Senecio (homem velho) (1922), Paul Klee
Ultra-passagens
0.
Vida, está aqui o recomeço,
espaço onde refaço o texto
anterior, desfeito em partes
1.
Um anjo em brasa, à espreita,
neste céu aberto da varanda
2.
Hoje, sexta, tão passada:
ontem ainda era segunda
toda a vista limpa, sem óculos
tocando aquele céu aberto, soletrando-o
à víbora do quebra-cabeça
lecionando à pedra sobre estar no ar
mãos-pele-sopro-visão
3.
tudo foi breve e o Agora vibra
4.
Escrevo contigo e sozinha
: com o tom drummondiAno e
um desentranhado tema da nossa espécie :
gravado no corpo com olhares
Fractais
5.
tergiversadas cores dessa sutura, unindo todas
as faces : uma paisagem híbrida, risos e choros
nas nuvens, neste umtempomuito, uma ferida doidamente
tão batida e tocada,
mas tão perplexa,
tão retrasada.
6.
Se confiaria no verbo
fazer?
O poema a seguir dialoga com a obra Tentativa de ser alegre (1975), Clarice Lispector — técnica mista sobre tela
Novidade do sonho
A boca prova a placenta
Arte das fêmeas
que par(t)em
São os fatos da vida
em aberto
redigindo o espaço do sinuoso nada
Ela sente o Deus na ostra
e respira, ainda que falte
Saliva
Leia o meu intento de sorrir
Latejante o furor do toque
Indescritível
Com as mãos desejadas
Tulipa desconhecida
matéria cúmplice e enamorada
eu vivo para ascender aos poucos
rumo ao momento elementar
Quem sabe responder à minha saudade
do sonho…
Seção: cotidiano tocado à espreita
Interlúdio seminal
Entre a fase do pólipo e da medusa
inaugurada na gestação do corpo:
escrito-fraga perfilhando água-viva
Nascedouro de transfigurações onde
Turritopsis nutricula anoitece
~tremeluz o evolado nome~ em
tentáculos, vagas e sombras~
Renasce daquilo que subjaz quando
se é destroçada a partícula informe
o substrato infinitesimal da loucura
Vem da sede de aguçar a plânula
e ancorar no território do Silente
Poesia: gozo primevo d’Organismo
Célula-tronco : mãe-ocaso-abrigo
transe nutante~ em marulho de gerações
Luz imantada ao corpo:
pura impossibilidade rIlhada
~anímico gesto reVerso à degradação
Ao partir da impermanência, um~
desenlace e excede o Abismo.