Deixa o sal limpar | As estranhas melodias de Livia Nery Revista Kuruma'tá, 1 de outubro de 20197 de junho de 2021 Texto de Toinho Castro Capa de Estranha Melodia – Foto e direção de arte de Caroline Bittencourt | Projeto gráfico de Olápis | Estilo de Isadora Gallas | Make de kaká Ribeiro | Assistência de produção de Bruna Palma O Festival Levada trouxe uma brisa fresca e poderosa para o Rio de Janeiro nos últimos meses de agosto e setembro. Vento bom, de gente nova e cheia de energia e talento. Frequentar os shows do Levada foi uma renovação de fé, que pega aquela velha conversa de que a música brasileira está acabada e joga no lixo. O Levada mostra que a música brasileira está viva, inventiva e vibrante. Dentre as surpresas que me reservou o festival encontrei a Livia Nery, artista baiana que lançou há pouco o disco Estranha melodia (Máquina de Louco, 2019). Adentramos então o espaço Labsonica, no Lab Oi Futuro, sem saber o que nos esperava, ou mais precisamente sem nada esperar. Fiz uma estranha questão de não escutar o disco da Livia antes do show, coisa que poderia ter feito via plataformas de streaming. Queria chegar ali para o que desse e viesse. E veio! Livia Nery e sua banda não cabiam no estúdio do Labsonica. Diga-se que os shows do Levada no Labsonica foram uma peculiaridade. Um grande espaço com um estúdio de gravação no meio, onde os músicos tocavam, como num aquário. A gente ficava de fora, assistindo, ouvindo, curtindo separados por pelas camadas de vidro que isolavam o estúdio. Parecia que não ia funcionar. Mas funcionou lindamente. E de dentro desse aquário de som e luz, Livia Nery e mandou muito, mas muito bem. Deixou-nos a todos impressionados com o alcance de sua voz, a riqueza deus seus arranjos e repertório. respirei aliviado e feliz com cada música que dali saía. Para mim, nordestino errante no Rio de Janeiro, que carrega raízes de sertões e de mangues, a música de Livia foi um feliz reencontro. A música de Livia carrega também raízes e memória. Por outro lado tem esse namoro com o contemporâneo, os beats e bits das maquininhas eletrônicas que fornecem pulsação a esse coração que viaja pela roça, pela praia, pela cidade. Estranhas melodias tem dez anos de gestação antes de ser vir à tona longe da Bahia, em São Paulo, produzido pela própria Livia e pelo músico e produtor Curumin. E o que eu li sobre o processo de produção desse disco envolve muita generosidade, muita troca e sutilizes para imprimir no mundo um trabalho de tamanha sutiliza. Medida certa entre acústico e eletrônico, conversa afiada de instrumentos e voz como se um precisasse do outro, como se estivessem continuamente a se complementar. A gente não vê excessos, sobras, penduricalhos… a gente escuta um disco preciso, milimétrico em sua desenvoltura, sem deixar de ser espontâneo, livre, quente. Gente, tá tudo o lugar. Incrível. Livia, sua banda e participantes ( Edgard Scandurra, Lucas Martins, Edy Trombone, Maurício Badé, Tatiana Lirio, Johanna Gaschler, Marcelo Galter, Israel Lima e Jorge Solovera) formam um sistema muito harmônico, que faz de Estranhas melodias, ao contrário do que propõe o título, algo tão familiar, tão perto da gente… que é difícil largar a audição. No dia seguinte ao show o disco não saiu do looping aqui na Kuruma’tá! Uma coisa que mexe no disco é a questão da memória. Quando escuto Ave sal, impossível não mergulhar nas minhas próprias lembranças do banho de mar, da água morna do Nordeste te acolhendo e os ruídos do mundo submergindo. Noite quente do sol do dia todoque esquentou água do portosó pra gente mergulhar bem fundona Pedra do Ouriçodepois encostar o umbigodevagar no chão do mar E no instante da maré vazanteo corpo flutuandodeixa o sal entrar Em Cantoria, um contraponto de lirismo em relação ao groove que permeia o disco, a memória está ali, quase como um filme sobre essa vida do campo, em que a dureza dialoga com a delicadeza, da madeira queimando, da lua e da viola esquentando a noite. Tudo é um registro sensorial…. a mão na enxada, a mesma mão que carrega o milho, a lenha, que produz o afago e arpeja a melodia. A poeta Livia Nery emerge da noite na roça com toda força, para traçar/escrever uma cena brasileira inesquecível: o terreiro, a noite, as gentes. O amor, enfim. Depois de um dia cheiona cabeça da enxadasubo aqui nesse lajedohora de voltar pra casa Da vereda pego atalhopra chegar bem mais ligeiroque o perfume que me esperaeu chega até sentir o cheiro Levo paca e milho verdeque catei na velha estradaque de noite tem banquetepara toda filharada Menino, dê cá a lenhaé noite de lua cheiaa coruja sai da tocae o fogo queima a madeira Viola encostou no peitoesquentando a noite friaas crianças no folguedonossa reza é cantoria Na esteira em que eu me deitoguardo um credopra meu deusagradeço a minha sortepor tudo que ele me deu No lajedo, um casebrena ribeira, um roçadoe no peito acesa a chamade amar e ser amado O que nos aproxima de um trabalho de arte, muitas vezes, é o quanto ele conversa conosco sobre quem somos. Sobre o que trazemos na bagagem da memória, no tecido do corpo. Trabalhamos cotidianamente com a ideia de que a memória está na cabeça, na mente… mas a memória habita todo o corpo. Livia parece que sabe disso e a memória está impregnada em seu trabalho por gestos, toques, movimentos. Sacudindo nos caminhos de Vinte léguas, música da cantora Evinha, do trio Esperança, do seu álbum solo de 1974… única canção dos disco que não é de autoria de Livia, mas que se encaixa no todo com elegância, peça de Tetris que ocupou seu preciso, e necessário, espaço. Música que se espalha por um Brasil estradeiro, de tantas distâncias, mas também um caminhar pra dentro, balançando o coração. Uma canção que faz uma ponte coerente que sai da musicalidade contemporânea e chega a esse território da música brasileira que transitou com o soul, o jazz, numa modernidade impressionante, que soa atualíssima. Irresistível falar de cada canção do disco, mandar um faixa por faixa integral, mas quero mesmo é te deixar com essa curiosidade que arrepia e que te faz correr pra ouvir um disco… essa coisa mágica que é um disco. Essa coisa mágica, cheia de entalhes e filigranas, apoiada em raízes, histórias e corações que é estranha melodia. Essas pérolas estão brotando no terreno fértil do nosso cancioneiro. seja curioso, não espere pela TV ou pela rádio para te dizer o que escutar. Busque caminhos alternativos, festivais como o Levada, procure saber o que seus amigos estão ouvindo. Música é troca e aprendizado. Confira o bate-papo de Toinho Castro com Livia Nery na ÁudioKuruma’tá! Livia Nery e banda no Festival Levada, 19 de setembro de 2019 (Fotos de Toinho Castro) A AfetoBahiaFestival LevadaLívia NeryMemóriaMúsicaMúsica BrasileiraMúsica eletrônicaToinho Castro