Corona, um banho de alegria Revista Kuruma'tá, 27 de março de 202018 de junho de 2020 Poemas de Márcio Fabiano Sou do tempo em que Corona era marca de ducha. Novidade anunciada com jingle chiclete na TV. Objeto desejado pela classe média, sempre louca para ter status. Ainda lembro quando tomei meu primeiro banho debaixo do chuveiro de grife. Me senti o Tio Patinhas. Naqueles dias, vírus só nas aulas de biologia. Minha primeira professora, Maria José, era uma personagem de Dowton Abbey : elegante, classuda, mulher de outros tempos. Dominava os mitocôndrios mas não tinha pulso com a turma. Depois, veio Rose, enérgica e cheia de novidades. A primeira delas foi nos chamar para dissecarmos um sapo. O cão quem foi ver aquilo, menos eu. Desse dia em diante, tornei-me amigo dos animais. O colégio era tradicional mas tinha suas peculiaridades. A direção era evangélica e pragmática. A festa dos 50 anos do bispo aconteceu na quadra. O diretor, membro respeitado da Igreja Batista, recepcionou o líder católico, que era esquerdista e foi um dos primeiros a pedir o voto para Lula na liturgia. Dom José Rodrigues era uma figuraça. Uma vez escrevi um texto em sua homenagem no jornal local. Meu pai chegou em casa e disse que um direitão fascista e homofóbico foi reclamar na agência bancária que o velho trabalhava. Eu perguntei, e o senhor disse o quê? “ Vou falar com meu filho, pode deixar.” Pragmático mesmo era meu pai. Disse que tinha orgulho do que escrevi e que o sujeito era cheio de pecados. O fascista hoje é uma estátua decadente na saída da cidade. Já Carlão, é um personagem de um mundo melhor. De vez em quando ele me manda recados nos sonhos. Freud explica. Doses de cuba livre também. Nos anos 80, ninguém era ainda revolucionário ou de direita. A gente era dividido pelos apelidos ( criei a maioria) e pelas personalidades. Os mais quietos ou se lascavam com nossos bullyings ou se vingavam de maneira extrema. Tinha um, que de tanto ouvir nossas piadas, um dia transformou-se no Exterminador do Futuro. Nunca vi um sujeito de 1,57 crescer tanto movido pela ira. Nem o Hulk. Desse dia em diante, tornei-me amigo dos excluídos. Em tempos de recesso, de distanciamento social, minhas memórias fervem. Já pensei na minha morte e estou criando uma playlist. Repetir o gesto do meu pai, que pediu as canções do Roberto e nós atendemos. Um primo ficou segurando o notebook durante boa parte do velório. Família é para isso. No meu vai ter Madonna, anos 70 e Luiz Gonzaga. Nordeste e Nova York. Tudo junto. E, please!!! Nem pensem em me homenagear vestindo camisas estampadas com minha cara. Se fizerem, eu volto igual aquela guria do filme “O Chamado”. Nunca mais vocês vão ter sossego. Acordei disposto a redigir o testamento. Sei lá, o que tenho é pouco mas não quero que a letra fria da lei se meta em minhas emoções baratas. O problema é que quando você vai listar o que tem de material, sempre tem a porra do sentimento para dar pitaco nas suas decisões. Tenho dois quadros representando Frida Kahlo. Um vai para minha amiga Rita, lá em Serra Talhada. O outro pensei em enviar para o alemão, o gringo que ainda merece minha saudade e um poema meia-boca. Alguém sabe como se diz “ eu te amei porra” na língua da Angela Merkel? Na quarentena, posso fazer mil coisas mas não sei ainda por onde começo. Decisão, até agora, só a ida ao barbeiro. Raspei tudo. Depois de anos, voltei a ter uma baby face. Mas já me arrependi. Antes, me confundiam com o George Clooney. Hoje, é o Boy George quem sorri no meu espelho. Em nome da beleza e da minha sanidade, vou deixar crescer de novo. Afinal, os dias são para colocar a barba de molho. Só que agora, a ducha é Lorenzetti. A vida tem isso. Perdão, Corona. A CrônicaJuazeiroMárcio FabianoMemóriaQuarentena