Descobrindo poesia

Texto de Toinho Castro


Uma das minhas grandes amizades, foi assim que a conheci. Tempos de faculdade, primeiro semestre no CAC – Centro de Artes e Comunicação da UFPE, estudávamos eu e Anamélia na mesma turma; um grupo de estranhos numa sala, se tateando e entendendo, fazendo as primeiras conexões, algumas que durariam anos. Que duram até hoje. Certa tarde eu passei por Anamélia no hall do térreo do CAC e vi que ela usava um broche em que podia-se ler Que a crítica não toque na poesia, verso de uma música de Caetano Veloso. Enquanto cruzávamos o caminho um do outro, seguindo em direções opostas, apontei para o seu broche falei E que a crítica não toque na poesia, com um jeito que me era então característico, e que Ana certamente lembrará. Aquele broche foi como um sinal luminoso na noite, desses que se disparam de botes salva-vidas. Eu poderia nadar até ele e encontrar alguém e me reconhecer nessa pessoa, nesse bote à deriva sabe-se lá em que mar. Daí travamos amizade, conversas, passeios, bares, cinemas… e essa é apenas uma das coisas que a poesia trouxe para a minha vida.

Todo aquele período foi um período de descobertas. Já bem antes da faculdade eu me interessava por poesia e vim a conhecer tanta coisa que ainda me acompanha. Mas ali, no Centro de Artes, essas descobertas floresceram num sistema mais amplo de trocas. Assim como a Ana, a poesia me ligou a muitos novos amigos, que traziam consigo poetas e poemas, tudo novo para mim. Tenho uma enorme gratidão por essa pessoas. Depois que a gente sai da faculdade as coisas arrefecem um pouco e um dos desafios é manter acesa a curiosidade e sempre buscar se surpreender. Então sempre estive com o ouvido colado à parede, procurando ouvir a voz da poesia, seu chamamento. E frequentemente tenho sido agraciado pela descoberta de poetas e obras que me cativam e surpreendem. Recentemente me encantei pela generosidade de uma dupla de brasileiros que reside na Islândia e que orquestra uma verdadeira ciranda de tradutores, que dedicadamente vertem para o português a poesia nórdica. Trata-se de Francesca Cricelli e Luciano Dutra, responsáveis pelo projeto Um poema nórdico ao dia. Devo a eles e aos seus bravos colaboradores a alegria imensa de conhecer uma poesia que me escapava completamente. Graças a isso que se chama internet, entrei em contato com eles, que não pensaram duas vezes antes de produzir um texto sobre seu trabalho, selecionar poemas e compartilhar tudo isso conosco, aqui na Kuruma’tá.

A poesia sabe que a procuro continuamente e não se furta de vir ao meu encontro. Esses encontros de agora, no entanto, são mediados por uma vida que já passa dos 50, por experiências e tantas leituras. Inevitável que seu sabor seja outro, distinto daqueles dias em que eu me sentava no gramado em frente ao prédio do CAC; ou mesmo antes, na escola, quando o livro de literatura me revelava o novo a cada virada de página. Parecia que eu havia caído num outro planeta, onde tudo ainda precisava ser nomeado.

Só que recentemente, e tudo que escrevi nesse texto foi para chegar até aqui, eu senti de novo aquele sabor, de descobrir uma poeta como se fosse num mundo novo. A mesma sensação de quando abri certo livro de Allen Ginsberg na Livro 7, por causa do título, Uivo, lá nos anos 80. Uma sensação que a gente acha que pertence a outro tempo. E talvez pertença mesmo e seja um anacronismo senti-la, ou a reverberação quântica da simultaneidade dos eventos. Algo que transcende a ilusão do tempo linear. O fato é que descobrir a poeta argentina Alejandra Pizarnik, me surpreendeu e encantou. Creio que me surpreendeu mesmo não conhecê-la ainda, uma vez que sempre tive muita atenção com a literatura da América Latina. Temo que fosse, infelizmente, uma atenção muito masculina, que muito precisei trabalhar vida afora. Verdade que a poesia de Pizarnik chegou a pouco em terras brasileiras, em duas edições, dos livros Os trabalhos e as noites (1965)  e Árvore de Diana (1962), ambos lançados pela Relicário Edições, em 2018. Mesmo assim não tê-la ainda lido é uma falha na minha curiosidade, que não me levou às suas páginas. Mesmo ela sendo amiga de Julio Cortázar, que sempre admirei tanto. Cortázar que chegou a escrever um poema para Alejandra e que eu nunca havia lido, até poucos dias atrás., que pôs fim à própria vida, em 1972, aos 36 anos. Em 1972 eu tinha apenas 6 anos de idade, e um longo caminho pela frente até conhecer essa poeta de versos curtos e tristes, carregados de surrealismo e noite.

Obras de Alejandra Pizarnik editadas no Brasil


Estou aqui resistindo a acessar sua biografia. Lembro de tantos poetas que conheci sem saber coisa alguma sobre suas vidas, ou muito vagamente. A internet me trouxe Alejandra e tantos poetas, mas trouxe junto tanta informação que acaba por contaminar o que a gente lê. É a tal da faca de dois gumes. Sei que ela viveu uma vida curta, sei que não se encaixava, sei que conheceu gente como Cortázar, Octávio Paz, viajou, frequentou o meio literário e trocou cartas com Silvinia Ocampo… fragmentos de uma vida. De uma vida em fragmentação.Cada poeta nos oferece um mundo. O de Alejandra é um mundo em permanente despedida. Vou lendo poema por poema, me aprofundando nesse mundo ao mesmo tempo que o percebo a afastar-se.

Deixo aqui a dica de um texto da também poeta Laura Erber sobre Alejandra e sua poesia, publicado no Suplemento Pernambuco, em novembro de 2017:

Embora seja muitas vezes lida na clave biografista, a poesia de Pizarnik se faz em intenso e vertiginoso diálogo com outras vozes poéticas que ela incorpora e fagocita, macerando e revolvendo certos versos ou topos até o seu esvaziamento ou contradição, como se a poesia fosse um ato de leitura ao mesmo tempo crítico e passional, que coloca o sujeito da leitura em risco. Há um modo de incorporação por eco em que ela vai esgarçando o texto alheio até o ponto de decepção. Esse diálogo privilegia bastante a literatura francesa com a qual ela mantinha uma intimidade crítica bastante particular, autores como Breton, Reverdy, Lautréamont e Rimbaud são cruciais nesse jogo de diálogo com os mortos. — Texto completo aqui.

Alejandra Pizarnik, vou ler e reler seus poemas num aprendizado permanente. Seus livros estarão, certamente, entre aqueles aos quais eu sempre recorro, como quem recorre a um mantra ou a uma memória ou a um quarto com as cortinas fechadas, para apagar o mundo. E acender outro mundo, feito de linguagem, do marulho interior de uma pessoa envolvida numa busca de si, e talvez do outro, com esses livro na mão, a adivinhar quem partiu.

O poema que não digo,
o que não mereço.
Medo de ser duas
a caminho do espelho:
alguém em mim adormecido
me come e me bebe


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