De volta ao passado Revista Kuruma'tá, 22 de abril de 202024 de abril de 2020 Texto de Napoleão de Paiva Sousa A Revista Kuruma’tá traz hoje uma contribuição do médico, poeta e escritor Napoleão de Paiva Sousa. Nascido na cidade de Alexandria, no Rio Grande do Norte, Napoleão já publicou os livros Apenas Chegaram, Depois Comigo, E Por Acaso Deliro, de poesia. Tem na fila um livro de contos com lançamento previsto para este ano. Vamos torcer que esse ano ainda seja capaz de nos trazer esse livro novo de Napoleão, que será muito bem-vindo. Foto de Juan Rulfo – Direitos reservados O momento atual pode ser comparado àquele sujeito que leva fama de rico a vida inteira, morre de repente, e então descobre-se a verdade: de rico não tinha nada. Países da América, Ásia e, principalmente, da Europa, economias consolidadas, sobre quem se enchia a boca para nomeá-los “países de primeiro mundo”, mostram hoje, claramente, diante a aluvião de mortes e sofrimento nos seus territórios, que longe estão das portas do paraíso que se auto atribuíam. Descobriu-se desafortunadamente que têm sistemas de saúde mal estruturados, confusos, com nível lento de decisões, respostas mais lentas ainda, sem correta previsão de catástrofes e, pior, sem lastro operacional/financeiro para fazer frente às dificuldades, como a essa onda escura que se ergue sobre todos nós. A Itália, quarta economia europeia, confessa não ter equipamentos – respiradores e EPIs – para assistir os seus; o governador e prefeito de NY convocam voluntários pela net, anunciando não ter insumos, máquinas e leitos suficientes para a assistência – a passos do colapso; a Inglaterra bate cabeça – em uma semana anuncia estratégias distintas para combater a Covid-19, e em seguida se rende ao unânime isolamento horizontal; a China, tão pujante na elevação anual do PIB, mistura num só balaio controles sanitários ultrapassados, tecnologia de ponta, e peneira política sofisticada e repressora de informações estratégicas de interesse humanitário – tornando suspeitas suas estatísticas, no mínimo. Constrangedor o mundo ocidental, de bolso liso, e a ONU, fazendo cara de paisagem ante as evidências de manipulação de informações, prisão de médicos, comportando-se como meros parceiros comerciais submissos e omissos, jogando aos porcos princípios éticos, morais, humanitários. Quando vi por esses dias o jornalista Mainardi nas ruas esvaziadas de Veneza, indo desmanchado em direção à Basílica de Santa Maria della Salute, tive a estranha sensação de uma dupla volta ao passado: meu aniversário de 28 anos, ali, em frente a La Salute, como conhecida, deslumbrado com sua beleza barroca e uma história de quase 400 anos. A igreja é o que se pode chamar de ex-voto. O maior que jamais imaginara conhecer. A peste negra havia enterrado um terço da população veneziana, mas a epidemia chegara ao fim. Nobres, padres, arquitetos, operários e a população lançam-se então à tarefa de erguer a basílica para agradecer à Santa Maria, e celebrar a graça (enfim) alcançada, pagamento de promessas inimagináveis. A exótica cidade devastada por uma moléstia de origem não sabida. Seriam as águas, castigos divinos, emanações doentias, ou a população de ratos e pulgas que infestavam seus canais e ruas tortuosas? Sem medicamento algum para tratar, anterior a mais vaga noção do que um dia seriam as vacinas, com a medicina sem noção do que fazer, e mais, do que curar. Havia forte suspeita de que tudo começara na China – teria por acaso sido em Wuhan? – aportando depois no território da hoje Itália através de 8 galeões genoveses. Lentamente (depois de décadas ou séculos) chegou-se a uma radiante descoberta: o valor do isolamento como meio de conter a propagação do mal. Tal como o de hoje, rebatizado de isolamento social. Afastar-se do convívio. A nobreza escondia-se em suas deslumbrantes propriedades rurais. A população contaminava-se indefesa nas ruas, no meio social. Anos para descobrir que a transmissão se dava pelas vias respiratórias e por secreções do corpo. A partir daí proibiram-se o acompanhamento de doentes por circunstantes, ou de rituais para velar os mortos. É provável que por então as ruas do medievo estivessem coloridas de lenços cobrindo as faces das pessoas, a se defenderem dos temidos miasmas, emanações contaminantes, e outras crenças anteriores à microbiologia. Os médicos que cuidavam dos enfermos da peste usavam uma roupa preta de couro e uma máscara, igualmente de couro, em forma de bico de pássaro. Séculos mais tarde passou-se ao uso de máscaras mais delicadas. Geralmente brancas ou azuis, com elástico. Tão longe, tão perto. A CrônicaLeituraMemóriaNapoleão de Paiva Sousa