+ POEMAS DO TESSERATO | CALÍ BOREAZ

Poemas de Calí Boreaz


balada dos vadios quadridimensionais

estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar

: na visão do pássaro a passar entre os fios da fiação-elétrica-sobre-azul
: na janela do 8º andar por onde cai lentamente alguém — em forma de nada
: no momento em que uma cor se apaga e outra se acende no semáforo
: no vidro a emudecer o frenesim do lançamento na livraria-café
: na fé quanto à necessária inutilidade de toda a poesia ali contida
na medida em que ela é
o contributo humano à infinitude do mundo — e para que serve
o infinito

eu estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar

: na intermitânsia do letreiro a anunciar o café curativo da ansiedade
: na busca alheia do gesto que livre a palavra do livro
: no suave compadrio entre o que arde em cada coisa da cidade
: na cidade como arte do encontro de linhas geométricas mas não de gente
: na tampa do esgoto que não explode pouco antes que eu pise nela
: no fogo a comer a outra parte da cidade enquanto esta sofre de esgotamento tampado, enquanto eu

continuo muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar

: na rasteira balística dos bilhões de sapatos ritmados a desarrumarem-se rumos
: na consciência da carteira vazia de notas e moedas e mesmo do que as precede
: na súbita e esmagadora surgência de um prédio abandonado
: na súbita e esmagadora percepção da beleza que há num prédio abandonado
: no que há de súbito e esmagador em perceber que no abandono assim muito assumido nos livramos de quase tudo e quase nada nos falta,
só um pouco de ar, e por isso é que eu

ainda estou muito compenetrada na imagem suspensa de um hipercubo a girar

atenta, a ver se a aresta-âmago a-que-brilha pára de frente pra mim
parece simples mas estou há oito mil anos nesta vã guarda
e depois não sei — penso que brilharei e esmerilharei todas as formas
da leveza
e da inutilidade inaugurais
penso que até sou capaz de pular carnavais (outra vez)
assim como quem se expande a partir de um 8º andar
levando consigo os pássaros os semáforos
os estilhaços dos vidros — e da poesia
as tampas dos esgotos pelo ar
e os passos dos funâmbulos finalmente
a desabar
e os fogos todos soltos
a confiarem-se as danças dos grandes vazios dos grandes lugares
o café os livros o poder de compra
recalculadamente
a brincarem de avoar com as crianças
ah, depois não sei — penso que a cidade toda será
não o chroma key do artista mas
a carótida das profundas crianças que nada sabem da língua e
só querem o abandono da cambalhota no ar, e rir
e rir demasiado
.
o que sei é que no desmazelo poético da cidade
o hipercubo continua a girar e eu, aqui à margem de tudo,
largar-me!
não me posso distrair
é que se não tivesse já parado, ainda podia parar
.
com uma vênia ao equilibrista
está tudo justificado


tempografia comigo de costas a olhar a fotografia que prendi

na parede última da décima primeira casa estrangeira, uma janela trans-espacial para a vista do quarto dos meus avós. num tropeço do atlântico, escorrego assim para os lados da lezíria do tejo, mais para dentro, e mais para dentro, ali onde termina o campo e principiam as tintas cítricas dos crepúsculos, e as estações frutadas, e a promessa do sumo quente das oliveiras, e de onde, tão de repente, se contempla a abundância do que precede tudo. dessa janela, ela amanhecia antes do inteiro mundo, e ela é que ligava a brisa os pólens e a cor rosa-chá da manhã, enquanto ele, de radinho baixo muito ao pé do ouvido, nem acordava (porque nunca dormia), desanoitecia.

e o que sinto, aqui parada a esta janela, não é a arrebentação da saudade, e sim a breve metálica sensação de um eu-futuro a olhar-me enquadrada aqui olhando o quadro

 

 

 

mas o que sinto, aqui parada a esta janela, não é tanto a fantástica projeção de um eu-futuro a olhar para mim-agora, e sim a longa consciência de um eu-passado — a olhar pela janela real e — sabendo que, um dia, aquela casa toda mesmo primeira seria estrangeira e aquela vida toda mesmo infinita seria enquadrada


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