Pela primeira vez, desde o começo da pandemia que nunca acaba, adentrei a madrugada sob a lona do Circo Voador. É um reencontro com o Rio de Janeiro, com o espírito da cultura livre, com a arte feita por gente. Viva o Circo Voador! Os portões abrem às 22h, mas nada começa antes de meia-noite. Talvez porque o rito exija a transformação, a fada do contrário, que à zero hora nos liberta da abóbora para a farra no palácio.
Era lá pra uma da madrugada quando Siba, primeiro show da noite, pisou no palco para esquentar e animar a plateia, com riqueza rítmica, bom humor e a poderosa carga política e carnavalesca de A Turma Tá Subindo.
A turma tá na rua e não vai mais parar
Tão gritando alto pra você ouvir
Acima de tudo não é seu lugar
Abaixo de todos você vai sumir
Quase duas da madrugada, Jorge du Peixe e sua banda preciosa adentram o palco. Gente, não tenho mais idade pra varar a madrugada desse jeito, mas foi só os acordes e melodias imortais de Assum preto soarem na atmosfera pra eu lembrar que estava ali para reverenciar a obra de Luiz Gonzaga, sua Majestade o Rei do Baião, na leitura comovente de Barão Granfino, disco carregado de afeto que Jorge lançou em setembro de 2021 e apresentava ali, num retorno à luminosidade do Circo Voador, como eu.
Que alegria imensa, nesse junho em que o Ciclo Junino desperta do seu sono pandêmico, ouvir as canções de Luiz Gonzaga em interpretações tão bonitas, realizadas com tanto cuidado e respeito, evocando a modernidade e elegância que é própria do repertório que Jorge alinhou tão bem no disco, e que desfiou ali num palco do Rio de Janeiro como quem pisa o chão dos sertões de Pernambuco. Porque realmente o que Jorge fez não foi modernizar Gonzaga, e sim evidenciar o tanto que sua música é moderna, altamente contemporânea e perene. E assim, o fole roncou e a poeira subiu. Cheiro de São João no ar e a fogueira viva de uma banda profundamente comprometida com essa tradição de um povo, que resiste, insiste e se impõe na hora que a gente quer falar do Brasil
Um show que renovou minhas forças e minha fé.
Música a música, Jorge du Peixe transformou a pista em terreiro de festa do interior. Não decorei setlist porque tava encantado demais e envolvido demais pelo ritmo, pela poesia e pela dimensão gigantesca do mestre Lua., mas escutamos ali o disco inteiro, com algumas adições como O último pau de arara e Festa (Belo é o Recife pegando fogo / Na pisada do maracatu). Ao mesmo tempo que éramos transportados para um Nordeste mítico, a brasilidade desse mesmo Nordeste se declarava por inteiro, tornando irreal essa ideia de uma cultura separada. Tá tudo entranhado, Nordeste é Brasil. Luiz Gonzaga é artista brasileiro.
Voltamos pra casa quase às quatro da madrugada, enlevados, reconectados com a energia vibrante das nossas raízes, que se espalha pelos nossos galhos e folhagens e nos faz crescer. Hoje mesmo, enquanto escrevo essas notas, estou ao som de Gonzaga e do Barão Granfino.
Ai, ai, Baião, você venceu!
Mas no sertão, ninguém lhe esqueceu
Longe do Recife, das fogueiras da minha rua de infância, lembrei do dia em que vi Rei do Baião no Aeroporto dos Guararapes, lembrei do meu pai, que na minha cabeça tem essa conexão com Luiz Gonzaga, talvez pela canção A vida do viajante, que foi a vida que meu pai levou. Gonzaga mexe com a gente e o Baião Granfino que Jorge du Peixe apresentou no Circo Voador nos devolve a um Brasil que prezamos, que queremos, pelo qual lutamos. O Brasil da alegria, da poesia, da festa do povo.
Viva o milho verde! Viva o São João!
PS. E ainda encontrei com Caru e Luiza!
Banda
Voz: Jorge du Peixe Bateria: Bruno Buarque Baixo: Fabio Pinczowski Guitarra: Lello Bezerra Sanfona: Nanda Guedes Percussão e vocal: Sthe Araújo e Victória dos Santos
Assista ao bate-papo com Jorge du Peixe no AoVivo Kuruma’tá, de 29 de março: