A poesia de Tereza Du’Zai


Que a excelente poesia de Tereza Du’Zai seja muito bem-vinda à Kuruma’tá, com suas imagens, seus ritmos e seu discurso incontornável do feminino, da mulher perante o mundo. Com sua liberdade intensa do falar. Poesia de vida, que pulsa, desafia.

PUTA

Quando minha filha nasceu, não me tornei mais uma desgraçada mãe solteira, me tornei PUTA;
Quando apelei à justiça pelos direitos dela, fui rechaçada, uma velha professora me mandou criar vergonha na cara. “Sabia que ele era casado, agora quer tirar dinheiro da família do coitado? Ele tem filhos com a esposa, e ela não vai aceitar isso, guria! Tais doida?”. Meus filhos receberam pensão, sim, de acordo com a legislação. É preciso honrar as conquistas de mulheres que se importam. Entendem?…
Quando rejeitei candidatos a “salvar” minha reputação, todos diziam ter me comido e “saído fora”;
Quando eu aparecia com um namorado, logo as vozes se erguiam uníssonas:: “Tá na cara que ele só quer ela pra comer e jogar o bagaço fora”. Ora! Eu era uma PUTA MÃE SOLTEIRA e ele queria experimentar – certamente eu me prestava a todas as suas exigências sexuais;
Quando entrei para a faculdade, não estava estudando nada, estava era fazendo programa. Inclusive nesse período descobri ter feito dois abortos. Sim, um aborto seria pouco, mas dois foram suficientes. Quando descobri tê-los feito – após uma série de ataques por consanguíneos, colegas de turma e de trabalho além de puta me tornei diabólica, um péssimo exemplo como professora;
Quando eu esperava o ônibus sozinha num ponto deserto, por volta das 23 horas, para finalmente voltar para casa, na zona rural da cidade, triste por saber que encontraria minha filha dormindo, exausta depois de um dia de trabalho e estudo, percebi uma movimentação estranha, carros conduzidos por motoristas machos e fêmeas, buzinando, passando devagar. Alguns me ofereciam carona, me chamavam para um “passeio”, ou só faziam um sinal para entrar e seguir. Havia conhecidas e conhecidos me espionando sorrateiramente, inclusive flagrei uma professora me fotografando…
Acreditaram ter como provar: se tratava de uma PUTA PROFISSIONAL, e fazia programa enquanto minha mãe sofria cuidando da neta;
Quando morei com um namorado e engravidei de meu segundo filho, a família dele me orientou a doar minha filha aos meus pais para que fosse possível seguir com o casamento, afinal ele era um rapaz jovem, bonito, solteiro, merecia alguém em situação semelhante… Foram três anos infernais, diversas separações e voltas. Ele rasgava minhas calcinhas se as considerasse pequenas; vestia minhas roupas rasgando-as também. Não demorou muito para eu me encontrar usando camisetas dele como vestido. Certa vez jogou um Baudelaire no lixo. “Qual a razão de eu ler aquelas merdas. Já não era louca o suficiente?”.
Por que permiti? Eu não permitia, eu o enfrentava, sempre o enfrentei, lutei muito, o Baudelaire não ficou no lixo, eu o li, Flores do Mal. Foi um período difícil de minha vida. Diziam para eu pensar no menino, diziam que ele mudaria, amadureceria, e eu persisti enquanto me foi possível, tornando o fim muito mais dramático.
Eu não doei minha filha, segui minha vida com meus dois filhos; com meus dois filhos rejeitados por seus pais, crianças perplexas diante dos preconceitos incompreensíveis para mim, preconceitos também manifestados contra eles nas Unidades de Saúde, nas escolas, nos aniversários de sobrinhos – isso quando os convidavam.
Quando eles foram para a escola, não faltou assédio, sondagens maliciosas, tentativas de manipulação contra mim, se iam de uniforme, não tinham outra roupa para vestir, voltavam com doações, peças enormes para eles, furadas, manchadas; se iam com roupas de passeio, recebiam advertência para eu assinar – três advertências para uma suspensão, avisavam. Minhas crianças tinham roupas, se fosse o caso, eu deixaria de comprar para mim, elas foram sempre muito bem cuidadas.
Meu filho terminou o ensino médio noutra cidade, pois, quando estudou na cidade onde nasceu, reprovou, por não aceitar as investidas contra ele, contra mim, contra nós. De personalidade semelhante a minha, se declarou ateu aos dez anos e isso os revoltou ainda mais, quando fui chamada à escola para conversar sobre o assunto. Se era verdade ou ele estava mentindo. Eu respondi: sou ateia, ele pensa como eu, talvez pense diferente um dia, não sou eu quem irá decidir, e decidiu ser ateu – e continua ateu. Sobre a reprovação, ele havia adiantado um ano de sua vida escolar com a implantação do ensino fundamental de nove anos, e ficou tudo certo, claro, para a decepção da perversidade inserida no meio pedagógico. Covardes!
Lembro-me dos rótulos impressos por alguns professores: “o filho da outra, o debochado…”.
Quando minha filha engravidou, solteira como eu, logo teve início uma série de ataques idênticos aos sofridos por mim.
Afinal a história deveria se repetir. “Viva!”.
Mas nós dissemos: NÃO! E NÃO! E NÃO!
Porque todas as famílias que conhecíamos tinham, e têm, suas PUTAS; algumas são putas exclusivas, de um machista só. Vivem infelizes, mas se dizem casadas e de respeito. Muitas são estupradas com frequência por seus maridos, mesmo enquanto dormem, depois de uma jornada dupla, tripla… de trabalho – Preciso dizer: o estupro durante o sono é uma barbárie ignorada, muitas vezes comentada com normalidade entre as heroínas do lar como algo natural, afinal é seu cônjuge quem a está estuprando, são mulheres casadas, mães do lar. Mulheres de respeito raramente são estupradas, isso é mais comum entre putas, putinhas, putonas, como me definiam.
Aliás, algumas dessas digníssimas senhoras são putas religiosas, fodem com vários servos de Deus em nome de Jesus, e gozam gritando: Aleluia! Aleluia! Outras são putas que adoram sair com rapazes mais jovens, com quem vivem os melhores momentos de suas vidas e têm seus melhores orgasmos, ou únicos, pois costumam fingir para seus maridos em suas transas à papai e mamãe.
São cúmplices perniciosas do patriarcado, por isso jamais as defendo. Muitas delas me apedrejaram o suficiente para que eu tivesse certeza do quanto são repugnantes, perversas, infelizes, invejosas… Sórdidas a ponto de envolver outra mulher nas mais terríveis experiências em nome de uma moral falsa, catastrófica, criminosa. Seus maridos infiéis, não raramente, fodem com outras mulheres e outros homens. Se sabem ou suspeitam? Muitas, sim, mas fingem, em benefício próprio, que não. Esses potros são muitas vezes os principais provedores da casa, Por isso, é deles o melhor carro; partem deles as principais decisões da família, de suas vidas.
Por fim, quando perceberam o quanto eu havia me fortalecido ao me defender e enfrentar suas conspirações veladas, passaram a agir de um modo bastante vulgar, mas sobre isso, nem irei comentar, é desprezível, embora cômico.
Elas continuam a defender suas rePUTAções. Assim como eu, uma ex-puta, defendo as putas, contra essas tais inimPUTÁveis.


Boceta

De pé no meio da praça, ele observa o movimento a sua volta, vestido à executivo: terno sob medida, óculos Gucci, pasta Prada, tudo original: sério, gargalhante, sério, gargalhante, sério gargalhante…
P0rrA! Alguém precisa chamar a família! Ou é rico e doido, ou vigarista e doido, ou um principal se divertindo coma cara da ralé.
E super loucos, super ansiosos para vê-lo se f0dend0.
Eu cá não duvido: fez uma aposta entre os seus enquanto bebericava um Grand Cru.
Um grande kÜ?
Rsrsrs…
Grand Cru, é uma marca de vinho.
Ele deveria experimentar uma Corote dividida entre os trecheiros numa pet.
Não há nada nele de andarilho. Foi aposta: quem conseguir juntar o maior número de curiosos por mais tempo ganha algo que não podemos comprar. Ricos se divertem com a curiosidade dos desgraçados que os financiam. Deve ser um escravagista do pinto rosa.
Pode ser um psicótico. Estranho é a polícia ainda não ter chegado.
Olha uma viatura estacionada lá!
Contei quatro.
Talvez seja um espião. Sei lá, melhor ir embora.
Quer saber? Esse merda que vá tomar no Ku! Tenho de trabalhar.
Preciso ir também. O Carlos está ali na Hercílio comprando um sapato. E não é um Brioni!
Car@lh0! Preciso pegar a Anastácia na escola! Se der eu volto.
Ainda não almocei. Também tentarei passar por aqui na volta. Quero saber qual é a desse maluco.
E a da polícia também.
Disfarça! Olhe quem tá lá!… A cópia do atestado falso há de estar na bolsa, Veio às compras e aproveitou para assistir um show, só para espairecer, peidar enquanto os carros passam, buzinam…
Observe: ele parece indiferente à plateia.!
Lá vem o But-But! O pastor da Sete, como sempre, vestido à marrom-diarreia.
Agora, sim! Veja! Ele se aproxima com a Bíblia aberta.
Está ronspirando: Ronc, ronc, ronc…
Aleluias! Glória a Deus! Ronc, ronc…
Oremos! Ronc, ronc, ronc…
Sai daí, suvaquento de bosta! Deixa o cara, porra!
Vai But-But! Expulse dele todo espírito de riqueza, vaidade e concupiscência.
Conscup, concuspe! O quê?
É só uma palavra. Esqueça!
Ai, malandro da Sete, lança pra cá toda sorte de grife que cobre o corpo desse ambicioso endemonhado.
Eu quero a mala!
Os óculos! Aqui!
O terno! O terno! O terno pelo amor de Deus! Eu mesmo faço os ajustes, But!
Mas enquanto o charlatão se aproxima, o desconhecido se empolga: desce as calças, exibe sua b0 c ta depilada, rosada e linda: Louvado seja o Senhor Deus, meu adorável irmão! Em nome de Jesus, eu imploro: ore pelo milagre do pau nascente. Não precisou mais de um minuto para que suas roupas e acessórios fossem todas atiras para o alto, por ele mesmo, causando grande alvoroço entre os seus expectadores e perplexidade aos olhos encantados de But-But.
Lígia lutou pelos óculos, mas alguém o furtou enquanto ela tentava enfiá-lo em sua bolsa;
Cadu deu um salto certeiro sobre a pasta e saiu correndo como um atleta em uma pista rápida.
O terno foi disputado com tal fúria e nada sobrou além de farrapos de tecido nobre, porém inúteis.
O cinto caiu nas mãos de Mana Pitolina, de quem ninguém conseguiu mais se aproximar. Lá pelo meio da tarde, ela voltou faceira com cigarros, pinga, leite condensado, macarrão instantâneo, refrigerante…
Somente quando o alvoroço terminou, os curiosos remanescentes atualizaram suas informações sobre o encontro entre But-But e o desconhecido, o qual glorificava a Deus enquanto o vigarista, arrebatado pelo vigor de sua linda bo c ta, a chupava com o furor , esganado de uma ovelha faminta em pasto gordo, ou ácaros pyemotes tritici, gemendo interjeições diabólicas. Sua respiração ofegante aumentou o fervor de seus roncos.
Fato: o desconhecido não tinha pênis, tinha, sim, uma bo c t@ sedutora, a qual fora exposta pela fúria libertadora do execrável But-But.
Espírito de pomba gira, possua o corpo deste teu dedicado servo A GO RA! Ronc! Ronc!…
Se ambos foram presos por atentado ao pudor? Que blasfêmia! A políci@ não haveria de interromper um exorcismo sacrolibidinoso de tal relevância por conta de um bando de bisbilhoteiros desocupados.
Eu hein!


De Pernas Abertas

Como um tumor outrora revestido por delicada capa brilhante,
Você avança com seus tentáculos vermelhos.
Como você se sente, senhora B.?
Santa Senhora B.
Sempre tão orgulhosa com suas toalhas de prato bordadas,
E uma cidade para defendê-la.
Bonitinha, enfeitadinha,
Anedota de bajuladores.
Esposa, mãe, filha, tia,
Prostituta conjugal.
Sem rumo em sua própria casa,
Você aguarda a volta de seu potro;
Amordaçada num casamento de aparências,
Privada do privilégio de ser a protagonista de sua própria mentira.
A culpa é sua, Senhora B.
Você é culpada por essa casa, esses móveis, essas cortinas, essas refeições;
Você é culpada por esses vizinhos, essas visitas, o egoísmo de seus filhos.
Você decidiu permanecer,
Permitiu que a adestrassem: ele e os outros.
Primeiro um carro para ele, depois para você – um modelo inferior, um carrinho “de mulher”,
Você é culpada, Senhora B.
Por todas as traições sofridas,
Não se faça de vítima, você as mereceu,
Você as merece. Você é falsa e conivente, Senhora B.
Não o julgue pelos filhos concebidos em leitos alheios;
E não finja tê-lo perdoado, pois você jamais se perdoou,
Sobretudo, não finja amar esses filhos gerados noutros ventres,
Isso pode ser perigoso para eles, e para você, Senhora B.
Saiba: ódio e amor são sentimentos antagônicos.
Essas moças, a quem você chama “vagabundas”,
São tão vagabundas quanto você, Senhora B.


Não perturbe meu silêncio

Porque você não sabe nada sobre ele,
Porque, enquanto eu falava, você não quis me ouvir;
Agora ele tomou dimensões descomunais,
Sutil, sem fúria.
Criou tentáculos entre os quais me abrigo sentindo a pulsão de sua profundidade, a viscosidade de sua pele.
Vocẽ já não consegue alcançar minhas mãos, nem eu as suas.
Lágrimas silenciosas descem, evaporam, drenam meu corpo, pouco a pouco…
Você conhece o poço dos silenciados?
Nele conversamos nossas dores sem falar.
Lá, o tempo se divide em dois,
E você poderá ouvir os ecos da mudez do mundo


Do Eu à Lírica

Não me impeça de partir,
Distanciar-me de tudo o que vivi.
É justa minha insatisfação;
Esta ansiedade para deixar seus lodaçais, alcançar colinas, transpor pontes, ou – por que não? – descansar no silêncio tumular.
Suas reminiscências gotejam desamor e crueldade.
Não simule a dor que, francamente, não sentes!
Não chores!
Nuvens cinzas aparecerão como mantas de chumbo.
Contudo, os vapores da saudade desaparecerão na indiferença
dos desprotegidos.
Mesmo que meu refúgio sejam cavernas escuras, nelas estarei alheia aos tormentos dos crentes alpinistas.
Lá invocarei o Deus-corpo e com ele comporei uma canção à Mãe-Não.
Nos reconheceremos, Eu e Deus?
Ouçam os ecos das débeis elegias surdas dos carniceiros.
Aprisionem suas dores tardias em seus sentimentos rochosos.
A mulher-fábula caminhará.


Poeminha do Mal II

Quisera eu, com meu poema, asfixiar, sangrar, esfacelar sua ideologia de estábulo.
E, como fazem as poetas malditas por natureza,
Arrancar e atirar longe essa máscara ardilosa que esconde sua face. Sua face morta.
Morta de medo, morta de vergonha, morta de rir.
Eu rio de você, com e sem máscara.
Nós.
Fluidos corporais: gases, vômitos, diarreias, palavras.
Minha pele filtrada.
Boca espumante,
Dedo na cara.
Pernas fechadas: dou, não dou…
Mil infernos dentro de mim.
Eu fecho a cortina para não agourar meu dia.
Ovo podre! Galinha choca!
Estourou no mundo, cuspiu meu embrião psicótico.
Meus versos, meu travesseiro, minhas unhas crescendo
Tenho mágoas, tenho dó,
Sou um circo, sou um rancho, sou uma vaca.
Toctoctoctoc
Faça amor com um palhaço e goze rindo na roda de fogo.
Estou repleta de hematomas.
Que surra, meu Deus!
Chicote? Sim, com ponta metalizada.
Tantos céus sobre minha cabeça…
E nenhum sobre suas costas?
Vomitei uma serpente.
Quer uma jaca? Um nabo? Um chuchu?
Sopa de lesma, leite de baleia, panqueca e pancada.
Profissão: matadora de poesia.
Quisera eu matar a mentira a socos e pontapés.
Vê-la se contorcer, se encolher como um verme exposto ao sol.
A culpa é sua por despertar em mim o pior sorvete do mundo.
Alô, mamãe! Alô, papai! Donas de casa! Alô, Dona Maria!
Ovos fresquinhos direto do cu.


Tereza Du’Zai, natural de Itajaí, SC, é poeta, contista, cronista e professora de Língua Portuguesa e Literatura. O tempo, a loucura, a solidão e a morte são temas recorrentes na obra de Duzai. Vencedora do III Concurso UFES de Literatura na categoria poesia, participou também de coletâneas publicadas entre 2016 e 2022


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