Independência Poética: Tóia Azevedo

Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA

Poeta de hoje: Tóia Azevedo

Tóia Azevedo é artista visual e poeta. Nascida na Bahia, vive em São Paulo desde criança. É graduada em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP e atualmente estuda Letras com habilitação em Grego na Universidade de São Paulo. Também foi aluna do CLIPE Poesia (2021). Sua pesquisa é centrada na investigação de arquétipos mitológicos, aspectos do feminino e no processo cíclico de vida-morte-renascimento. Tem como principais meios a fotografia e a escrita. É autora do livro de poesia “Meninas loucas não vão para o céu” (Quintal Edições, 2022).

O que te inspirou a começar a escrever?

Uma necessidade de conter em palavras a terra desolada que me habita – ou pelo menos é assim que hoje concebo o que o eu-criança-adolescente sentia. Crescendo, fui entender (e vou estar no processo de entender até o fim dos meus dias) que é impossível a escrita conter o todo. É nas ranhuras desta vastidão que ela crava suas garras e depois escorre. Escrever é sólido e líquido ao mesmo tempo.

Esses dias estava conversando com a minha mãe sobre as origens desse meu eros. Ela disse, você pequenininha era viciada em ler tudo o que via pela frente. Via uma placa e já estava lá, tentando decifrar as palavras em voz alta, como se fosse muito divertido ver as letras se juntando e se separando. Acho que isso, atrelado a essa vontade de explorar esta terra desolada, resume um pouco o que me inspirou e me inspira até hoje a escrever: o quanto as letras grudam umas nas outras por essa força magnética e misteriosa e, a partir destas combinações infinitas, criam símbolos que escorrem significados.

O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias?

Me desconecto da obrigação de escrever. Vou para as redes sociais rir de memes, começo a pesquisar fenômenos geológicos, assisto vídeos e leio textos sobre algum período histórico que me vem a cabeça. Recorro as mitologias, aos arquétipos, as tragédias gregas. Pesquiso etimologia de palavras e anoto fragmentos de poemas que me vêm em sonho. Tento condensar todos os pensamentos acelerados no meu diário, que compreende desde relatos cotidianos a divagações de madrugadas insones.

Seu maior sonho como escritor(a)?

Ser lida: tocar e ser tocada, sentir e ser sentida.

Assunto preferido de escrever?

Gosto de escrever sobre as múltiplas sensações que acometem meu corpo de mulher. Dentre elas, a loucura ocupa um lugar muito evidente – a mulher que se perde em si mesma, a mulher que grita, que se joga da escada, que sente, sente, sente demais. Nesse aspecto, me interesso particularmente por doppelgangers e a duplicidade entre a mulher que eu sou e a que me encara do outro lado do espelho. Sinto a necessidade de escrever sobre o desejo e o luto corrosivo das mulheres que se apaixonaram por homens que as deixaram para trás. E, permeando todas essas temáticas, escrevo sobre o limiar vida-morte: sempre me senti entre mundos, assim como Perséfone, a deusa grega da primavera e rainha do submundo, que não pertence a um só lugar, mas está sempre em trânsito. Costumo dizer que ela está em cada letra e ausência na deriva que é a minha escrita.

Um elogio para sua própria escrita?

Penso que trago uma intensidade que reflete um estado interior, mas que também é fruto de uma construção estética. Também penso que a minha escrita busca criar sensações a partir de uma tapeçaria de referências com base em diversos assuntos que me interessam, que vão desde literatura e mitologia grega a buracos negros, por exemplo.

Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos?

Sim! Publiquei um livro de poesia chamado “Meninas loucas não vão para o céu.” E em breve irei publicar uma plaquete pela Primata, chamada “perfeito azul, que tem como temática uma breve investigação acerca da natureza dos duplos, a partir do diálogo entre os filmes Cisne Negro e Perfect Blue. Também
tenho planos de publicar um romance, que ainda está em processo. E na minha cabeça tenho ideias para mais uns cinco livros.

Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita?

Literalmente qualquer coisa. Pode ser um rótulo de bolacha no mercado, uma obra de arte no museu que eu trabalho ou alguém aleatório que vejo no metrô – só para citar uns exemplos. Me inspiro muito nos livros que leio e em conceitos de outras ciências, como a Geografia, Física, Biologia, dentre outras. Sou muito curiosa, e as vezes estou lá, três horas da manhã, pensando: “existem vulcões na Antártida?” ou “como é o movimento de formação das montanhas?” e depois encontro algum jeito de condensar essas informações na literatura.

A inspiração pode vir também de alguma obra musical ou audiovisual, porque no fim acho que todo os tipos de criação estão interligadas. Esta semana mesmo estava tendo uma aula sobre o “processo criativo” dos autores da antiguidade. Segundo alguns relatos apresentados pelo professor, uma parte da construção de uma obra se baseava primeiramente na leitura atenta de outras – e em um subsequente destaque de trechos considerados potentes, que poderiam servir de futura inspiração, assim como hoje em dia grifamos os nossos livros ou anotamos letras de músicas e cenas de séries que nos tocam.

E claro, tudo isso misturado a temas muito recorrentes (e cotidianos) na minha escrita: o ser mulher no mundo em que vivemos, a saúde mental e a loucura, os duplos e todas as paixões avassaladores que parecem nos comer vivas.

Qual dos seus poemas mais te define?

A maioria dos meus poemas partem de uma premissa pessoal, mesmo que, a medida em que se desenvolvem, busquem ampliar o campo da experiência para algo mais universal. Então essa é uma pergunta bem difícil. Vou escolher um poema do meu livro “Meninas loucas não vão para o céu”. É o poema “manifesto-limítrofe, que foi fruto de uma provocação poética da escritora Bruna Mitrano, na ocasião do seu módulo no CLIPE-Poesia da Casa das Rosas em 2021. É um poema, como o título sugere, composto como uma espécie de manifesto do arquétipo que desenvolvo no livro, a liminal menina louca. Gosto bastante deste por explicitar a indefinição e a intensidade de querer fugir do seu próprio corpo, enquanto a estética rabiscada e fragmentada reflete este conflito.

manifesto-limítrofe

sempre arranhar os nós dos dedos
e a ponta dos dedos
e a unha dos dedos
na parede áspera
ou com as próprias unhas
*
sempre enlouquecer nas horas
menos indicadas
como se houvesse um momento ideal
para purgar o corpo
*
sempre i̶n̶s̶u̶p̶o̶r̶t̶á̶v̶e̶l̶ mutável
*
sempre come demais e vomita pouco
sempre come pouco e vomita demais
*
sempre possuída pelo diabo
*
sempre atrasada
entre nada
e exagero
*
sempre escolher
entre se jogar da escada
e cortar a cara com gilete
*
sempre
perder
a
porcaria
do
controlesjbzbxndncnxmsdbxbdnfhgff[
*
sempre reunir ao redor
uma multidão ávida
por um acidente
*
sempre nos limites do meio termo
*
sempre
meudeusmeudeusmeudeussssssquerserinternadadenovoporra?sempresempresempresem
presempresempresempresempresempreaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaa
aaaa
aaa
aa
a

Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você?

A parte mais fácil é o nascimento da ideia. Já escrevi poemas no caminho de casa após passar por um corredor de bebidas no mercado – quando o corpo ferve e a cabeça acompanha, é uma delícia porque as letras se juntam como se fossem imãs. A mais difícil é quando não há este compasso: queima escrever queima minhas mãos queima todo o resto dentro fora cima embaixo até eu implorar a qualquer deus para levar ela – a escrita – para bem longe de mim.

Qual sua obra favorita de outro autor(a)?

Pergunta difícil para uma libriana que já queria citar uns quinze títulos, risos. Vou citar a minha favorita no momento: Electra de Sófocles. A tradução para o inglês de Anne Carson é maravilhosa – outra autora que gosto muito, em especial, do livro Eros Doce-Amargo. E não poderia deixar de destacar a obra que me fez enxergar a poesia como um campo minado a ser deliciosamente percorrido: Ariel, de Sylvia Plath.

 


Um livro de Tóia Azevedo

Nome da obra?

Meninas loucas não vão para o céu.

Quando e em qual editora foi publicada?

Foi publicado em junho de 2022, pela Quintal Edições.

Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual?

Sim, existe. É a busca desse local liminal em meio ao caos que nós, meninas loucas, ocupamos: se somos profanas demais para o céu, para onde vamos? E como a loucura se desdobra a partir das relações com o espelho, a família, os homens e Deus?

As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso?

De certa maneira, sim. Cada “bloco” de poemas tem uma temática (origens e infância, iniciação sexual, transtorno alimentar, desejo, histeria etc) e são intercalados com páginas pretas contendo poemas em prosa que são espécies de preâmbulos para estes temas. Há uma ideia de mente fragmentada, um ego que vai se corrompendo e descendo as escadas da loucura a cada página virada.

O que te incentivou a escrever esse livro?

Minha relação pessoal com a saúde mental e o estigma de ser uma “menina louca”. Como muito da minha produção vem de questões internas, me parecia natural criar uma obra que tivesse como tema principal este feminino caótico que historicamente foi considerado histérico, e suas implicações em diversas esferas. Muitos poemas foram criados antes da ideia do livro nascer, e foram retrabalhados a medida em que eu me aprofundava mais na linguagem poética. Neste sentido, um curso que fiz logo no início da pandemia sobre a poética de Hilda Hilst, com a querida Geruza Zelnys, foi decisivo neste processo. Lembro que um dia o título só apareceu na minha cabeça, como se cravado por alguma mão invisível, piscando como um letreiro neon – e foi ao redor deste estandarte que as meninas foram crescendo.

É possível destacar uma poesia que mais se assemelha a seu cotidiano?

Poderia citar vários. Cito o poema “menina bonita”, que demonstra, de uma maneira sintética, minha relação de frustação com as imagens de perfeição e beleza vendidas pelas redes sociais. Quero dizer, é um absurdo, não é? Para ser reconhecida você tem que ser bonita, e para ser bonita é como se você precisasse de um pedaço de cada uma dessas mulheres: as pernas da Giselle, a barriga da Adriana, a bunda da Kim. É impossível.

A sequência dos poemas conta alguma história?

Sim! É uma história de nascimento-morte-renascimento. A menina louca nasce louca, morre inconformada e renasce aceitando sua condição. Pensando na apropriação da iconografia católica que permeia o livro, a sequência dos poemas representa todo este percurso: o batismo, a extrema-unção, a ressurreição ao terceiro dia.

Existe algum posicionamento político ou cultural na obra?

Sim. Muitas vezes explicitamente, outras nem tanto, o livro traz elementos de pautas que movimentos feministas vêm tendo a décadas, por exemplo. Também enxergo, a partir da discussão acerca da saúde mental – e portanto sua desestigmatização – um posicionamento antimanicomial.

Qual a relevância dos personagens implícitos/explícitos da obra?

Muita. Os poemas desenvolvem diversos arquétipos que, unidos, contam uma história. Há uma personagem que permeia toda obra e que já se apresenta no título: a menina louca. Ela chega de frente, intensa, hérege e rosa neon como a capa. Tem aquela energia rebelde de uma adolescente que está descobrindo o mundo, e para ela tudo é superlativo, de Cristo o amor. Esta é a menina-mulher que “sente demais”. Então todos os poemas trazem essa agonia, esse berro que me lembra muito a Courtney Love no álbum Live Through This, do Hole. É um lado oculto do feminino, o lado proibido que assusta os homens – que também são personificados nos poemas a partir de diversas facetas, do Pai ao amante, de Deus ao abusador.

Qual a poesia mais marcante desse livro?

Creio que “No princípio era o caos”. Foi um dos três poemas que inscrevi no CLIPE-Poesia de 2021, no qual eventualmente fui selecionada. Penso muito nele como um “fundador” do livro, um ímã no qual os outros se atraem. Aqui temos o nascimento apoteótico da menina louca, e muitos elementos que serão abordados mais a frente já estão presentes neste poema de abertura.


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