O jogo Revista Kuruma'tá, 14 de julho de 202322 de novembro de 2024 Texto de Toinho Castro Xilogravura de José Lourenço (Juazeiro do Norte – CE) Marlene sorriu porque tinha acabado de levar uma bronca do jogo, por algo que dissera. E que eu nem percebera, porque eu olhava para os búzios jogados sobre o tecido branco que cobria uma pequena área da pequena mesa. De olhos fixos no jogo, eu imaginava as linhas de força que ali se cruzavam, ou dali emergiam. Lembrava daquelas ilustrações dos velhos livros de ciência, das linhas de força de um campo magnético em torno de um imã. Ou mesmo as recentes representações das trajetórias explosivas de partículas no LHC. Aquilo estava falando sobre mim. Sem que eu pudesse escutá-lo. Ou seria aquele ruído que parecia sublinhar o aparente silêncio da sala. De súbito ela me disse, tirando os olhos do jogo e me alcançando como se fosse de longe: — Não era pra você ter nascido. E isso, meu nascimento, só se deu pelas forças de Oxalá e Iansã, que me insistiram no mundo. Sim, meu parto foi difícil. Foi cesárea, ou nem seria. É o que dizem, o que ouvi de minha mãe, que não sabia dessas duas forças a me puxar, a me disputar com… com o quê? A morte? O oco do tempo? Só sei que venceram o cabo de guerra, e eu só soube disso naquela sala com Marlene, que era vetor das palavras que contam a história escondida de cada pessoa. Ela ia narrando tortuosamente, e pontualmente me relacionando mais e mais a Oxalá, lembrando-me sempre, como uma nota de rodapé, como um beliscão: mas tem Iansã. E eu fico aqui, perscrutando a dança desses dois, que só agora sei que são os que estão. Oxalá sábio, velho. Oxalufã… Mas tem Iansã. E hoje, com essa ventania de chegada de frente fria, como não lembrar dela? Sou desses que abre janelas na tempestade. Sou desses. Marlene disse que sou antigo Foi meu primeiro jogo. Eu não sabia o que dizer, o que perguntar. Se deveria perguntar ou saber. Deixei-me levar. Ouvi e acreditei naquela forma antiga, ancestral, de saber das coisas e dizê-las. E curiosamente agora sei ainda menos do que sabia, porque vislumbro que há tanto mais que não sei. Porque portas e janelas só se abrem para o desconhecido. Quando não vemos o que não sabemos, é porque está tudo fechado. Agradeci a Marlene. Agradeço ainda. Não era pra ter nascido. Mas eu nasci, porque era pra eu nascer. Que mundo incrível em que essas duas afirmações podem ser verdadeiras, como o Gato de Schrödinger. Conto CrônicaFéJosé LourençoJuazeiro do NorteOxaláXilogravura