Existência e coragem

Por Aline Valente

Eu percebi que uma base
do imponderável se fez ali naquele
tempo-espaço entre nós duas.

Ela sentia fortes dores de cabeça. Não tinha vontade de viver. Ficava deitada quase o dia todo por causas das dores de cabeça e pela falta de vontade de viver. Tomava remédios que a ajudava dormir. Quando a vi pela primeira vez, estava em uma bicicleta voltando da escola do filho mais velho e me contou dessas dores, logo no nosso primeiro encontro. Ela encostou a bicicleta e começamos a prosear. Ela me contou que o filho mais velho era muito agressivo e constantemente ela era chamada para ir à escola.

— Tenho que ficar lá na escola com ele, assistindo aula para não deixar ele bater nas outras crianças. Eu fico nervosa com isso. Ele me dá muito trabalho, bate nas crianças lá.

— Ele toma algum remédio?

— Toma remédio controlado. Eu não tenho afeto por ele. Não sei gostar desse menino. É muito difícil pra mim, ele me lembra muito o pai dele.

Depois de algum tempo olhando para aquela mulher, eu compreendi a legitimidade da falta de vontade de viver. Viver era só enfretamento para ela. A existência exigia muita coragem. E a coragem não legitimava a existência. Eu fiquei ali olhando para ela enquanto ela falava. Me perguntava de qual lugar abscôndito ela tirava força para se levantar, o pouco que fosse. Fosse pouco, era muito para enfrentar o passado e o presente. Eu olhava para ela e queria perguntar como conseguia criar condições para a sua existência, embora eu não conseguisse elaborar uma pergunta. Talvez as condições não existissem. Havia uma aparente força que a fazia existir.

— Eu casei muito nova com o pai desse menino. Ele me dava tudo, roupa, sapato. Ele fazia tudo para mim. Mas me agredia. Quando eu engravidei, ele me bateu muito. Esse menino é assim porque apanhou muito quando estava na minha barriga.

— Você não tem culpa.
Eu me apressei em afirmar isso a ela. Queria garantir que ela não se sentisse culpada. O coração apertou. A gravidez de uma mulher que deveria ser celebração, foi melancolia. Eu talvez não assimilei, naquele momento, a lacuna que ela possivelmente não vai preencher. E também não assimilei porque naquele dia ela reviveu esses momentos vividos. Era uma história que não parava de existir. Na memória. Na coragem. Na força.

— Eu não tive coragem de ir embora.

— Mas você não tem culpa.

— É, não tenho.

Ela afirmou sem acreditar. Talvez era um pecado ela não ter culpa. Culpa por não ter coragem. Eu me lembro de achar que não tinha o direito de estar ali, de acessar aquela história, aquela culpa, aquela coragem para existir. Eu tinha ido fazer um trabalho de campo. Era ir e voltar. Mas essa mulher chegou com a bicicleta quando voltava da escola do filho mais velho e me atravessou. Os atravessamentos designam nossos caminhos, nossa memória, e as histórias – dos outros e a nossa história. Continuamos ali, de pé, em frente a um galpão de madeira de uma associação de agricultores rurais. É de histórias como essas que muitas mulheres vieram, são dessas histórias que pertencemos. De onde pertencemos, e de onde há tanta falta e ausência é que devemos sedimentar nossa luta. Naquele dia, eu e ela entendemos isso. A vida, afinal, tinha seguido em frente.

— O pai do seu filho mora aqui?

— Não, em outra cidade.

— Então você teve coragem de ir embora.

— Tive, mas deixei meu filho para trás. Quando ele nasceu, o pai dele me trancou em um quarto e deixava comida na porta. Fiquei nessa condição durante um mês. Eu tinha decidido que quando conseguisse sair, ia embora. Ia deixar o filho com ele, porque ele tinha dinheiro e seria um bom pai. Ele era ruim comigo. Com o filho, eu tenho certeza que ele seria bom. Eu não convivi com meu filho. Vim embora. Depois de seis anos, ele devolveu esse menino pra mim. Não consigo gostar dele. É a cara do pai. Toda vez que eu olho pra ele, lembro de tudo que eu passei com o pai dele.

— Seu filho também não tem culpa. É preciso cuidar de você, eu disse. É importante se manter acordada, sem dores. Você já foi ao médico para investigar essa dor de cabeça?

— Fui sim. Eu tive uma sequela da raqui (anestesia), quando eu tive meu segundo filho.

Eu olhava para essa mulher e a via tão forte que me assustava. Parecia tão preparada pra tudo. Mesmo ela me tentando dizer o contrário.

— Meu segundo filho é do meu atual marido. Depois que eu vim embora, um dia reencontrei um homem que eu tinha conhecido na minha adolescência. Conversamos, relembramos o passado e começamos a namorar. Vim para esse lote aqui com ele e com a família dele. Comecei junto com ele a reconstruir a minha vida. Ocupamos essa área junto com outros produtores rurais e construímos nossa casa. Comecei a fazer parte desse movimento de luta aqui, a fazer parte da associação. Sonhamos em fazer nossa casa aqui, em produzir e vender, viver dessa terra. Eu quis engravidar do meu segundo filho. Eu amo esse menino. É diferente do outro. Não gosto quando o meu filho mais velho me abraça.

— Seus filhos brincam juntos? São amigos?

— São, mas o mais velho bate no mais novo. Porque ele é agressivo. Aí eu bato muito nele. Eu bato nele todo dia.

— E o seu marido?

— Ele é bom. Mas ele não vai ficar comigo muito tempo não. Às vezes ele quer sair, ir na casa da família dele e eu só quero dormir, sinto muitas dores de cabeça, não quero ver ninguém. E nenhum homem aguenta isso. Acho que ele é compreensivo, mas não sei por quanto tempo.

— As dores de cabeça são sequelas da raqui (anestesia)?

— São sim. Eu senti logo depois que o efeito da anestesia passou. Senti muita dor, passei mal, quis logo vir embora do hospital.

— E porque você não falou com o médico? Você não poderia ter saído do hospital nessas condições?

Eu percebi que uma base do imponderável se fez ali naquele tempo-espaço entre nós duas.

— Médico não se importa comigo, eu sou preta e pobre. Eu tinha até medo de falar com o médico que estava sentido dor. Eu tomo meus remédios para dormir, a dor passa, eu durmo, não tem remédio para esquecer das coisas que já passei, mas eu durmo e quando eu estou dormindo eu não lembro. Então é bom.


Aline Valente, desenvolve trabalhos com mulheres e comunidades. Articula e mobiliza junto com elas, ofícios como expressão de resistência e pluralidade. Porto Seguro, Bahia, Brasil.