Texto de Toinho Castro
O mundo nem era assim como é hoje. O mundo era diferente. As gentes eram diferente e diferentes eram as línguas. O céu era muito diferente. O céu foi mudando aos poucos. E o céu começou a mudar no dia em que tudo começou a mudar. Kuruma’tá era peixe mas não vivia nos rios, nem nas lagoas. Kuruma’tá vivia no céu. Há muito subiu para o céu. Durante o dia o sol ofuscava a vista de quem olhava pro alto, mas de noite via-se o céu estrelado daquele tempo. Muito tempo atrás.
Kuruma’tá era peixe mas também era constelação. As tribos que habitavam o mundo celebravam a terra, as águas e o céu. Cultuavam Kuruma’tá, que ao longo do tempo cíclico que os anciões então contavam, arrastava pela cortina do céu seu cortejo de estrelas. Kuruma’tá enviava as chuvas que enchiam as lagoas e transbordavam os riachos em rios caudalosos. Os membros das tribos nadavam, pescavam e atravessavam com suas canoas as águas que Kuruma’tá, do céu, alimentava. Havia harmonia entre as demandas da terra e os poderes do céu.
Até que…
Um ancião sábio, poderoso e, como hoje se sabe, ambicioso, achou por bem desafiar os segredos do mundo e empreender o caminho até o céu e, de lá, reinar sobre a terra. “Se Kuruma’tá achou o caminho até o céu eu também vou encontrar”. Dizia certa lenda que Kuruma’tá vivia revolvendo o lodo no fundo da lagoa na beira da qual a tribo cresceu. Dali alimenta-se e ali sonhava quando adormecia. Um dia Kuruma’tá avançou profundo na camada de lodo. Cada vez mais fundo Kuruma’tá avançava, em busca de alimento e alento. E quanto mais fundo ele ia, menos luz do sol ali havia. Kuruma’tá foi mergulhando mais e mais nessa escuridão.
Aí começou a ver pequenos pontos de luzes que pareciam insistir em brilhar no silencioso escuro que tudo havia se tornado, De repente as pequenas luzes brilhantes encheram a noite de Kuruma’tá. Kuruma’tá havia encontrado a passagem para o céu e contemplou a imensidão das estrelas. Como esse caminho era um caminho sem volta e um peixe não poderia viver no céu, Kuruma’tá foi transformado em constelação e uma proibição foi lançada pelos que governavam o céu: Ninguém, jamais, deveria nadar tão fundo quanto Kuruma’tá. Ou o mundo seria castigado.
Numa dessas noites sem estrelas, confiando que ninguém o veria, o ancião adentrou a lagoa e nadou e mergulhou e forçou passagem pelas águas frias, sob os olhares dos peixes, tartarugas e outros animais ainda sem nome que ali viviam. Forçou seus braços e suas pernas rumo à camada de lodo que o aguardava lá no fundo. Rumo à passagem que ela guardava. E quanto mais fundo ele ia, mais o mundo vibrava numa frequência que somente as constelações e os poderes do céu podiam sentir. Era como um sinal. Um alerta. O céu estava sendo invadido.
Então Kuruma’tá-constelação brilhou no céu mais intensamente que jamais brilhara. Comandou então que as águas se avolumassem, se somassem umas as outras, por todos os caminhos que conhecessem. Kuruma’tá alimentou ainda mais rios, mares, lagoas e choveu copiosamente sobre a terra. E assim as águas subiram, subiram, cobriram terras, plantações, a copa das árvores e alcançaram o céu. E como sempre acontece, o mundo teve que se renovar. Nem tudo escapou do torvelinho que se deu. Mas as vidas sempre encontram maneiras de perdurar.
E as águas tanto subiram de seu leito original que alcançaram Kuruma’tá. Mal foi tocado pelas marés, Kuruma’tá tornou-se peixe outra vez, pois estrelas não podem viver nas lagoas. Como peixe ele nadou para o fundo, o fundo mais profundo de toda água que cobria o mundo.
Antes que o anião pudesse alcançar a brecha entre terra e céu, Kuruma’tá o alcançou e o encantou com feitiços que aprendera no céu. Contou-lhe as histórias do mundos, os caminhos que levaram até ali. E mesmo, vendo as pequenas luzes das primeiras estrelas brilhando lá no além do lodo, o Ancião desistiu do seu intento e despiu-se da soberba. As águas baixaram, os rios se acalmaram e o mundo das pessoas e das feras estava pronto a girar outra vez. E uma outra tribo veio a habitar a beira da velha lagoa.
Dizem que no fundo mais profundo Kuruma’tá e o ancião guardam em silêncio a passagem entre a terra e o céu. Dizem que no céu falta uma constelação e os que nascem sob esse signo são dados à poesia e ao canto. Ciclicamente, como tudo no mundo, de onde quer que estejam, viajam até a lagoa e se postam ao seu redor, a inventar palavras e entoar loas a Kuruma’tá.
Ainda hoje assim se dá. E nem sabemos…
Texto de Toinho Castro