Texto de Toinho Castro
Hoje estão demolindo os velhos Galpões do Cais José Estelita, no Recife. Tive uma vida inteira passando por aqueles galpões, que ficavam num dos meus caminhos para o centro da cidade, para o Cais de Santa Rita. Naquele tempo já parecia abandonado, como boa parte do Recife sempre me pareceu uma cidade velha, corroída; algo que lhe dava um certo charme. Éramos meio poetas, meio tristes do mundo, e esse abandono combinava com os versos que escrevíamos ou sonhávamos.
Para quem desconhece o Estelita era um complexo de galpões e tanques de armazenamento, associado a linha ferroviária que por ali passava. Trens carregados de açúcar, para exportação talvez. Muito do que recordo é imaginação. Às margens desse espaço, que hoje vem abaixo, não sem resistência de quem pensa e ama a cidade, está a av. Eng. José Estelita, uma linha reta que liga o cabanga, sobretudo para quem desce da ponte sobre a bacia do Pina, vindo da zona sul, até o centro da cidade, subindo o viaduto da Cinco Pontas. Caminho que percorri muitas vezes.
Nunca pensei que um dia aquelas estruturas perenes, lutando contra o tempo e contra os homens, pudessem desaparecer. Pareciam as ruínas de templos, de civilizações perdidas. E talvez o fossem mesmo. Quando começaram pelo mundo movimentos de revitalização de espaços como o Estelita achei que os Galpões ganhariam vida, seriam ocupados por aquilo que sempre queremos tantos… Arte, liberdade, espaços livros e dedicados ao humano, ao lúdico, ao vibrante. Mas não. A especulação imobiliária demente lançou garras sobre o Estelita como espaço em branco, sem história ou memória. Sem afeto. Uma ocupação financeira, um corte social que estabelece um dentro e um fora, quem participa e quem pode apenas assistir. A encenação triste da ganância.
Já vejo as pessoas no ônibus, indo trabalhar duro por aí, passando pelos prédios de viro inacessíveis para eles. Achando até alguma beleza naquilo tudo, talvez até um certo orgulho de sua cidade ter um conjunto de prédios como aquele, tão altos, tão de vidro, com tantas luzes quando temos tão poucas nas comunidades escuras que se entranham na cidade, tentando existir. Por que abrir espaços para o povo se você pode fechá-los? Lá do alto, os que lá viverem, verão a cidade como se ela não existisse, a Bacia do Pina estendida até o mar, Brasília teimosa (Formosa) logo adiante como o próximo bastião a tombar.
Certa vez, de madrugada, passei de carro pelos galpões do Estelita e pensei como eram nobres fantasmas, como se só eu pudesse vê-los. Havia um ruído que, certamente, era dentro de mim. O ruído da memória, que é o ruído de um trem carregado de açúcar, passando entre os carros o Cais de Santa Rita. O ruído do meu pai comentando algo sobre os galpões enquanto passávamos certo dia por ali, algo que não recordo. O Estelita me lembra muito meu pai porque ele trabalho com transportes, cargas… ele tinha algo a ver com esses deslocamentos, esses espaços de transição, de passagem.
Olhei meu fantasma do Estelita naquela noite e pensei que, como ele, eu também não existia. Espectros noturno alimentando recordações mútuas. Sei que escrevo como se fosse fato consumado o fim do Estelita como o conheci porque de súbito fui atingido pela mão que o ameaça. Mas sei agora mesmo tem gente da melhor espécie numa dura luta pelo destino desse espaço. Solidarizo-me com essa gente, para que esse vão de trilhos enferrujados e galpões vazios seja incorporada à cidade com a vida que lhe cabe, vida vibrante e sem medo. Que de lá possamos ver a Bacia do Pina como nossa e sentir o vento mareado no rosto. E há de bater ali um coração, quem sabe na pulsação ritmada dos trens carregados da história violenta de Pernambuco; talvez, por fim, os redimindo.
Para se inteirar da situação do Cais José Estila recomendo acessar a página Marco Zero.
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Texto de Toinho Castro