FC no tempo e no espaço

Texto de Toinho Castro


Creio que comecei a ler ficção científica lá pelo fim dos anos 1970, começo dos anos 1980. devia ter de doze pra catorze anos, por aí. Recordo com clareza de um livro que me marcou muito, chamado Essas estrelas são nossas, o escritor escandinavo Poul Anderson. O livro tinha uma capa fascinante e caiu como uma luva numa mentalidade que eu já estava formando, voltada para rudimentos de astronomia e fantasias espaciais. Devo dizer que o filme Contatos imediatos do terceiro grau, de Steven Spielberg, teve um papel fundador nesse sentimento.

Eu morava num bairro periférico de uma cidade periférica. Descortinar galáxias, universos inteiros, aos abrir a página de um livro era um lenitivo. A ficção científica, ao mesmo tempo que era uma espécie de Nárnia muito particular, me trazia uma dimensão do mundo real. Eu compreendia, de alguma maneira, que a ficção científica falava de nós.

Devo muito a uma editora chamada Hemus (Haverá ainda?), que existia na época e que me deu Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Frederik Pohl e outros. E Ray Bradbury… sim, Ray Bradbury. Até hoje um dos meus autores prediletos, responsável por textos que até hoje eu leio regularmente. Bradbury era uma espaço de humanidade em meio à exuberância galáctica que eu consumia. Era um norte que me ajudava a a ordenar toda aquela informação de tantos livros, que eu não podia compartilhar com meus pais ou irmãos. Ou pelo menos achava que não podia.

Mas em meio a tudo isso havia uma lacuna que eu não sabia haver. A ficção científica brasileira. Eu havia lido um livrinho interessante, O que é ficção científica, escrito por certo Braulio Tavares, volume 169 da coleção Primeiros Passos, da editora Brailiense. Tal livrinho me abriu portas e apresentou títulos como O homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick. Um livro mesmo de ficção científica, no entanto, demorou pra entrar na minha vida. Foi uma coisa tardia.


Hoje sou um animado leitor da FC produzida na terrinha e acompanho de perto a produção de uma variedade de escritores que fazem desse gênero um espaço de relevância na literatura brasileira. Ficção científica é coisa séria e a prova disso é a diversidade de vozes, subgêneros e expressões. É significativa, impactante e fala, ainda, sobre nós.

Por conta disso tudo, e numa espécie de acerto, trago aqui no Kuruma’tá, esse espaço selvagem, a dica de três lançamentos brasileiros e um livro que não é lançamento mas que me encantou demais. Que eu li com gosto.

Que fique claro que essas dicas são um recorte dentro de um universo riquíssimo, de muitos autores espalhados pelo país produzindo FC de primeira linha.

Fanfic, de Braulio Tavares.

Pois é. O tal escritor paraibano, que lá atrás me deu dicas e me ajudou a entender melhor a FC no seu livrinho da Primeiros Passos, é um dos grandes nomes do país no gênero. Braulio Tavares é aquele cara prolífico, que já escreveu e traduziu legião de textos. Mexe-se com desenvoltura entre suportes e gêneros literários. Sua generosidade como escritor permite um permanente diálogo com tradições, com erudição e um senso Pop certeiros. Impossível falar de FC brasileira e não chegar ao nome de Braulio Tavares, responsável pelo clássico A espinha dorsal da memória, de 1996.

Seu novo livro, Fanfic, lançado pela Editora Patuá na sua coleção Futuro Infinito, reúne textos seus de diversos matizes, diversos tons. Em todos eles há esse entrelaçamento com tudo que Braulio leu, porque, antes de tudo, ele é um leitor. E também fã, no sentido, mais uma vez, Pop da palavra (e tem outro?!). Borges, num dos seus versos, diz:

Que outros se jactem das páginas que escreveram
a mim me orgulha o que li

Ler Braulio Tavares, em seus muitos livros, é ser tocado por esse amor a leitura. Em Fanfic dá-se o mesmo. E sempre nos surpreende.

Back in the URSS, de Fábio Fernandes

Acho que em todo autor de FC tem esse amor pela leitura e pela referência ao caminho trilhado. isso surge das maneiras mais imprevistas. esse amor está lá, no grande Fábio Fernandes, outro nome e tanto dessa seara. Escritor e tradutor de mão cheia (verteu para o português, entre outros, o potente Neuromancer, de William Gibson). Seu trabalho autoral também tá aí para demonstrar como a FC produzida em Terra Brasilis é diversa e inventiva.

Seu novíssimo Back in the URSS, na coleção Futuro infinito da Patuá, é bom demais. Ousado, vibrante e vertiginoso. John Lennon, Bioy Casares, alienígenas na terra, a semana de Arte Moderna… facetas desse estranho cristal furta cor que Fábio escreveu, desafiando as ordens do tempo e do espaço. Bagunçando ou rearrumando as coisas? 

Estão lá a literatura e a leitura desenhando mundos pela mão de um escritor hábil e destemido. Tá valendo demais.

A mão que pune – 1890, de Octávio Aragão

Gente, Octávio Aragão inventou a Intempol, a polícia do tempo malandra e antropofágica que compõe uma das experiências mais interessantes da FC. Só por isso já é verbete. Octávio escreve com humor, ironia e muita bagagem na cabeça, de muita leita. Pessoal, ler é tudo! Como Braulio e Fábio, é um escritor premiado, tradutor também, e muito versátil. Versatilidade combinada com uma incrível capacidade de manter elos narrativos entre tudo que escreve. É botar o olho um livro de OA e saber que é dele mesmo!

A mão que pune – 1980,  é seu lançamento mais recente e faz eco a muito do que ele já andou escrevendo. Livro com jeitão clássico e atmosfera steampunk. E quando falo em atmosfera não estou falando de clima mas daquilo que a gente respira. O livro de Octávio é tradição, no melhor dos sentidos, com uma leitura inteligente, sagaz mesmo das referências várias que tecem essa trama bem elaborada e cativante.

Octávio Aragão dá aquela sensação de Hitchcock. A gente sempre acha que ele se esgueira nos seus livros e está ali, no canto do balcão do bar sem que ninguém saiba. 


As águas-vivas não sabem de si, de Aline Valek

Além da questão da nacionalidade foi fácil perceber que havia outras questões importantes quanto aos meus hábitos de leitura, que era baseada em autores homens e brancos. E isso exigiu mais uma correção profunda de rumo.

A escritora Aline Valek disse o seguinte numa entrevista:

Talvez as mulheres que escrevam ficção científica não sejam poucas, apenas não tenham visibilidade.​

Pois bem, as escritoras de FC estão aí, são muitas, e se elas estão na luta por uma justa visibilidade, cabe a gente como eu rasgar a carteirinha desse clube do machinhos e comprar os livros dessas mulheres. Simples assim, comprar, comentar, emprestar, recomendar. E é nesse espírito que recomendo aqui um livro justamente da Aline Valek, As águas-vivas não sabem de si, lançado em 2016 pelo selo Fantástica da editora Rocco.

Sempre me fascinaram as águas-vivas, talvez mesmo pelo que sugere o nome, pequenos pedaços do mar que criaram vida, movidos por uma vaga consciência. Quando eu era criança meus programas de TV favoritos eram Viagem ao fundo do mar e Laboratório submarino – 2020. O fundo do mar era meu outro espaço sideral, minha outra zona de silêncio… uma vida inteira querendo viver, platonicamente, em plataforma em meio ao mar e estações espaciais.

O livro de Aline devolveu-me a esse mundo. Com Corina, uma mergulhadora profissional que participa do projeto de um laboratório submarino, adentramos esse mundo silencioso e escuro. Nossas noção de tempo, espaço e do que é vida, do que é estar vivo, são desafiadas numa narrativa fluida e bem construída. Ir fundo para Corina não é simplesmente uma profissão mas uma maneira de enfrentar a si mesma, suas limitações e ansiedades. E Corina se move ainda atrelada a uma trama sobre a busca da vida, da inteligência… na verdade de uma outra inteligência na vertigem dos abismos marinhos. Haverá caminho? Haverá volta?


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