Texto de Adriana Nolasco
Coincidências podem nada significar, mas são uma espécie de mágica. Talvez seja o caso de chamar de sincronicidade, conceito desenvolvido pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica, utilizado para definir acontecimentos que se relacionam não por relação de causa e consequência, mas sim de significado. A sincronicidade é também referida por Jung como “coincidência significativa”.
Pois foi isso que aconteceu comigo. Uma coincidência significativa. Nunca tinha ouvido falar de Luiz Ruffato, até que meu marido, vendo uma entrevista dele na TV, resolveu comprar um de seus livros, Eles eram muitos cavalos. Quando acabou de ler, me recomendou: você deveria ler esse livro, lembra um pouco o estilo do Sandro (William Junqueira), principalmente a liberdade da forma, uma coisa muito singular, você tem que ler (essa última frase foi repetida muitas vezes). Passadas algumas semanas, depois de acabar a leitura de Ninguém precisa acreditar em mim, do Juan Pablo Villalobos, outro dos meus escritores contemporâneos preferidos, me vi naquele momento “o que ler agora?” e resolvi embarcar na sugestão, sem muito entusiasmo nem muita expectativa, mas curiosa com o porquê da insistência na sugestão. O que teria esse livro a ver comigo do ponto de vista de outra pessoa? E, pensando bem, começar as coisas sem expectativa pode ser bom, mantém o caminho aberto para o que der e vier. Descobri que Eles eram muito cavalos não tem nada de ordinário ou comum, muito pelo contrário, pertence à categoria dos extraordinários. E não é preciso esperar, essa sensação já chega desde a primeira página. Passado num único dia, em São Paulo, o livro dá voz a múltiplos personagens, que não se encontram, e suas respectivas histórias, uma cacofonia de vozes que procuram dar conta da brutalidade e da solidão do cotidiano numa cidade grande, que poderia ser qualquer uma, mas por acaso é São Paulo. Uma teia de dramas humanos narrados em formatos tão diversos que surpreendem, abarcando desde a narrativa clássica até um cardápio, um diálogo, a descrição dos livros de uma estante, uma carta, um horóscopo, o trecho de um anúncio de jornal, parágrafos que não se completam e outras maravilhas.
Mas a coincidência ou sincronicidade não acaba aí. Depois de terminar o livro e ficar absolutamente encantada (parece que fico encantada com facilidade, mas parece também que tenho dado sorte ultimamente) postei uma foto da capa, com os dizeres “livro incrível”, numa rede social. Poucos dias depois me chega uma mensagem de uma amiga, que faz doutorado numa universidade carioca, com o cartaz de um evento: um encontro com Luiz Ruffato no dia 9 de maio. A Universidade era a PUC RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), onde estudei Comunicação Social há muitos anos atrás. Fazia tempo que não voltava lá e até a véspera do evento fiquei presa na boa e velha balança libriana (meu ascendente) da indecisão: vou ou não vou? Ia ter que faltar um outro compromisso blá blá blá, mas a razão do meu coração votou a favor e me disse: Adriana, quando você vai ter outra oportunidade de ver esse cara falar? Faça alguma coisa diferente, mulher! E lá fui eu. Quinta-feira, 9 de maio, 9 da manhã, campus da universidade, sala K102, pros íntimos Edifício Kennedy 102, o famoso pilotis da PUC, e eu, espécie de ET, penetrei naquele velho novo mundo, cheio de gente da idade que um dia eu já tive quando estive ali. Foi uma viagem. Ou melhor, a viagem começou ali. Dei um rolé, subi pra sala 102, cheguei cedo, esperei no corredor e na hora que achei que já tinha gente o suficiente, entrei na sala. Ninguém me perguntou quem eu era nem o que eu tava fazendo ali. Ótimo, primeira barreira vencida, sou uma anônima feliz. Agora era Luiz Ruffato, que já estava ali faz tempo se misturando com os seres humanos comuns, na sua mais cativante mineirice. Pessoa deliciosamente simples, sem frescuras, sem afetações nem arrogâncias de grande escritor. Porque de fato ele é um grande escritor, estava me dando conta disso, mas continuava sendo uma pessoa como outra qualquer, além de simpático, acessível, sério, engraçado, brilhante e com cara de padre.
O bate-papo/palestra começa e, distraída que sou, descubro deslumbrada que aquela era a terceira edição do Cavalos Day, data comemorativa ao livro promovida pelo Departamento de Comunicação, todos os anos, no dia em que se passa o romance! Dia 9 de Maio! E eu não havia percebido. Atinei também que o livro que tinha acabado de ler, não era qualquer livro, e por isso a celebração do seu dia. Vencedor dos prêmios APCA e Machado de Assis (da Biblioteca Nacional), Eles eram muitos cavalos foi considerado pelo jornal O Globo, entre outros, como um dos dez melhores livros de ficção da década, e está publicado na França, Itália, Portugal, Alemanha, Colômbia, Argentina, Estados Unidos, Finlândia, Cuba e Macedônia. Ufa. Uma voz que fala com muitos.
Abro um parênteses aqui. Nesse exato momento, em que a vida das Universidades públicas brasileiras, e do ensino público em geral, está ameaçada, foi um bálsamo e um cutucão circular pelo campus da PUC, mesmo sabendo que é uma Universidade particular. O ar que se respira ali é diferente. Tem outra densidade e me fez lembrar da intensidade da experiência do acesso à educação universitária, mesmo sabendo que na época em que a frequentamos não temos muita noção disso. Estar ali foi fundamental pra reforçar a importância desse locais, principalmente das Universidades Públicas, que também frequentei nos meus cinco anos de curso de Medicina na UERJ. Às vezes é necessária uma experiência de aproximação pra que nos lembremos de determinados porquês. E nesse sentido é preciso lutar firmemente a favor da educação pública de qualidade nesse país. Ela é a nossa base. E o evento do qual estava participando me lembrou disso.
Voltando ao Ruffato, entre outras coisas, disse que escreve pra si mesmo e se as pessoas gostarem, melhor ainda, que não gosta de fotografia sua em livro, que conversa com seus personagens, que lhe ditam o que escrever em seguida, que sempre soube sobre o que escrever, sobre o trabalhador brasileiro, mas que não sabia como e que Eles eram muito cavalos é um experimento em torno disso. E mais importante que tudo: garantiu que chegou à conclusão de que a literatura salva sim, porque tinha feito isso por ele. Nascido em Cataguases, Minas Gerais, em 1961, nunca imaginou onde ia chegar. Foi pipoqueiro, caixa de botequim, operário têxtil, torneiro mecânico, jornalista, sócio de assessoria de imprensa, gerente de lanchonete, vendedor de livros autônomo e novamente jornalista antes de finalmente se dedicar à literatura. Formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (olha e educação pública aí), publicou vários livros entre os quais Estive em Lisboa e lembrei de você (série “Amores Expressos”), Eles eram muitos cavalos, Flores artificiais, De mim já nem se lembra, Inferno Provisório e a Cidade dorme, todos pela Companhia das Letras.
Para quem ficou curioso e quiser uma aproximação maior com o Luiz, que nem aquela que eu mencionei com as Universidades, vale assitir o discurso que ele fez na abertura da Feira do Livro de Frankfurt em 2013.
O vídeo em si virou uma peça aclamada e procurada pelo seu conteúdo brilhante, transparente e inspirador. Uma homenagem à literatura e um retrato de Brasil que permanece fresco e contundente. Impossível não se afetar.
No final, mais algumas surpresas. Luiz estava lançando, aqui no Rio de Janeiro, naquele dia, o tal do 9 de maio, seu mais recente livro O verão tardio! E ele estava disponível pra venda logo ali, na sala de aula! Não pensei duas vezes, levaria O verão tardio e Estive em Lisboa e lembrei de você (porque amo Lisboa) para casa. O livreiro me incentivou: vai lá pegar dedicatória, ele sempre dá. E, timidez à parte, lá fui eu. O resultado: abraço apertado e três livros autografados com dedicatórias impossíveis de ler. O mineirinho me avisou: teria que decifrar sozinha o que estava escrito ali. Não decifrei até agora.
Já no ônibus de volta, começo a ler Estive em Lisboa e lembrei de você e encontro mais uma “coincidência significativa”: o protagonista joga pelada num time de futebol chamado Primeiro de Abril, dia do meu aniversário. Obrigada Luiz Ruffato, te conhecer foi um presente.
[Assista aqui a palestra de Luiz Ruffato no Cavalos Day, no dia 09 de maio de 2018]
adriana nolasco escapou da medicina, com sofreguidão. tem uma produtora carambolas -, muito prima de coletivos poéticos de cunho anárquico. entre outros planos, faz filmes, cometendo em quase todas as funções, com especial apego à fornalha. além, cutuca as letras e seus avessos, muitas vezes com vertigem no céu da boca. adestra sombras em conluio com a sorte e garimpa flores com a mesma astúcia que encontra esbarrões. já lavou calçadas, especulou em bolsas obtusas, traficou marfim em continentes distantes. atualmente, pensa em não pensar, com muita dificuldade.
adriana publicou em 2018 o livro Até quase perto, pela editora Urutau.
Adriana feliz em ler sua resenha. Sou suspeito em falar do Rufatto, que eu chamo de Fernandinho, saímos junto de Cataguases para Juiz de Fora, ele, eu e o Jorge. Formamos juntos no Senai e viemos em busca de trabalho e estudo com o sonho de votarmos escritores. Embora o Rufatto ter mania de dizer que não sabe como chegou eu sempre lhe disse que sabe sim, ou deveria saber. Chegou e ainda vai além porque e bom. Um grande abraço.
Marcos Vinicios
Poxa, Marcos, que alegria ler seu comentário! Fernandinho é um apelido maravilhoso rsrsrsrsrs, combina mesmo com ele! Tb tô me tornando suspeita pra falar do Rufatto, a literatura dele me atingiu em cheio, desde “Eles eram muitos cavalos” já devorei “Estive em Lisboa e lembrei de você” e agora tô no começo de “O verão tardio”, gostando cada vez mais do Fernandinho e do que escreve. Acho q já virei aquele tipo de fã q vai ler tudo q ele publicar e tb tenho a impressão q serão muitos. Q privilégio tê-lo como amigo e compartilhar histórias de vida =) E vc? tb escreve? Fiquei curiosa. Esse povo de Cataguases tem talento, viu? Tb adoro como falam (e escrevem), essa mineirice particular encrustada em vcs. Obrigada pela força, foi um prazer te ler. Beijo grande.