Nós, enfermos


E lá vamos nós com mais uma novíssima colaboração para nossa Revista Kuruma’tá. Chegou a vez do amigo e jornalista Eduardo Frota, que traz esse seu primeiro texto, de muitos que virão, que nos guia por entre as paredes dos hospitais e dos silêncios e barulhos da cabeça, dos pensamentos.

Texto de Eduardo Frota


I
Corredor de hospital e entrada de UTI são locais nos quais as potências de vida e morte se chocam de forma devastadora. Como dois trens em direções opostas. Ao maquinista, o controle. Ao enfermo, o descontrole: o bipe das máquinas, o ruído do ar-condicionado, o ranger das portas diante do entra-e-sai de gente. Como na plataforma, há um púlpito no qual o acento agudo das vozes em discussões ignóbeis ganha reverberação. O que deveria ser um solilóquio é amplificado e faz vibrar o ar ao redor. Barulho dói, diz o cartaz. Barulho dói.

II
Agora mesmo, nos confins do universo, milhões de estrelas nascem e morrem, cumprindo uma dança que nos escapa o compasso. Agora mesmo, dentro de cada um de nós, há células que nascem e morrem, cumprindo uma dança que nos escapa o compasso. Agora mesmo, ensaiamos o que dizer, o que falar, o que sentir. Escapamo-nos de nós mesmos. Não há compasso que desenhe um círculo perfeito.

III
Falta é arbitrada, machuca, é passível de punição. Produz um tipo de buraco no qual a matéria não se faz presente. Então entendemos que existe a ausência, esta sim etérea, flutuante, intangível, capaz de pairar sobre paragens distantes com a mesma lividez de sempre. Longe de ser o antônimo de presença, ausência é a sua permanência intacta, retilínea e uniforme, sem buracos.

IV
Há um relógio na parede de cada quarto de hospital. O mecanismo que impulsiona os ponteiros produz um ruído indecoroso. Trata-se da nossa necessidade em escalonar compassos milimetricamente. O tempo é seccionado por nós mesmos, aqueles que ainda não descobriram como retardar a ação do tempo em nós mesmos. Os relógios nas paredes dos quartos de hospitais somos nós mesmos. É um escárnio sutil que avilta nossos fantasmas. E cantam: não temos mais o tempo que passou.

THE MEDICAL SERVICES ON THE HOME FRONT, 1914-1918 (Q 18932) An operating theatre at the Royal Naval Hospital, Chatham. Copyright: © IWM. Original Source: http://www.iwm.org.uk/collections/item/object/205253361

V
Anticonvulsivante, antitérmico, anti-histamínico, ansiolítico, analgésico, anti-inflamatório, novalgina, codeína, morfina, antidepressivo, prednisona, soro fisiológico, metadona, fungicida, supositório de glicerina. Quimioterápico, homeopatia, terapia. O que não pode ser prescrito, nem deve ser manipulado, o que é curativo? O corpo aguenta a dose, retesa. Compaixão. Overdose dela.

VI
Não há mais ruído possível, não há mais nada. Não há mais um rio possível de ser nomeado, porque já é outro a passar. Fecho os olhos e o que vejo é ensurdecedor. Fecho os olhos porque o coração sofre de uma arritmia severa. Há em mim um sopro, o ruído de um sopro, que só pode ser ouvido quando a água acumulada nos meus olhos vence a barragem e desce feito o rio. O nome, eu não sei. Não queria que se chamasse dor. Queria que se chamasse apenas saudade.

VII
A sala de espera é feito um purgatório particular das angústias de cada paciente e de cada acompanhante presente. Todos, utentes da vida. Há um acordo velado e tácito, que permite perfilar lado a lado, frente a frente, cada um de nós – com seus receios, suas angústias, suas buscas por esteios. A nossa sala de espera não tinha revistas de pontas amassadas com fotografias de sorrisos amarelados. Era mais como uma sala de estar. Uma sala de estar em nós mesmos. Nossa sala permanece lotada de convivas. Brindemos nossa sala, brindemos o nosso estar.

VIII
Há um estranho sentado à mesa da minha sala. Ele devora a comida enquanto fala, de boca cheia, sobre o passado. Ele se levanta após a sobremesa e, refastelado, com os dedos ainda melados, decora os corredores com doces memórias das quais não há passado. Vai embora à francesa, sem se despedir. Bate a porta com força e deixa a chave na portaria. Amanhã ele está de volta. Penso em trocar a fechadura. Desisto. É melhor tirar os espelhos das paredes da minha casa.

IX
A rotina é como o mar em dia de ventania, em noite de ressaca. O ponto distante no fim do horizonte é um barco à deriva. A maré que enche, a espuma que farfalha, a vala que mantém tudo no mesmo lugar. O amor é feito o pescador em tempos de labuta endurecida, a estibordo, emborcando, desafiando a turbidez das águas tempestuosas. O movimento das ondas, o sobe e desce. Uma hora a bombordo, outra hora a boreste. O farol, ainda que distante, a leste. Distante, mas certo como o instante em que, do alto, gritará o navegante: estamos todos salvos.

X
É como se tivessem cortado o telefone.
Silêncio.
Nem um chiado.
Boleto vencido.

É como se tivessem cortado o gás, a luz, a água, a internet.
Devia ter chiado, porra!
Boleto atrasado.

É como se tivessem me cortado.
Fala comigo!
Silêncio.
Vencido.


Eduardo Frota é jornalista, escritor, barista, cinéfilo e ex-bonito. Escreve de texto institucional a bilhetinho de amor. Escreveu um livro de parágrafos, publicado pela Editora Jaguatirica, entitulado “Aqui jazem romances“. Escreve sobre café para diversas publicações do setor. Escreve sobre jiu-jitsu para a Gracie Mag. Escreve sobre o que faria se ganhasse na Mega-Sena: compraria uma igreja evangélica e a transformaria em um cinema.