Ela, a criança, é o elo Revista Kuruma'tá, 17 de junho de 201930 de dezembro de 2019 Texto de Eduardo Frota Acendeu uma vela, mas não era reza. Acordou já em meio ao blecaute, desses em que o silêncio parece entrar no ringue para empreender um barulhento nocaute. Precisou ir ao banheiro para checar a sanidade. Olhou-se no espelho feito uma santidade, iluminado apenas pela chama. Chamou seus fantasmas, conjurou seus demônios, deixou com que eles abrissem suas asas escarlates. A vela, ele a acendeu para ela. A criança, aquela. Quando começou a envelhecer, a perceber que crescia em meio a essa disritmia, sabia que seria assim. Passaria a vislumbrar a inconsequência juvenil como única saída diante da ordinarice ao redor. Ou melhor, alimentaria descontroladamente a criança enfastiada e farta que, ele sentia, ainda resistia. Queimou o dedo indicador. Não sentiu o ardor da cera. Apenas uma coceira que não foi forte o suficiente para estancar a torrente. Não foi por falta de aviso – falavam sobre isso desde a época em que ainda tinha na boca todos os seus cariados quatro sisos. Os mais velhos sempre alertaram sobre o fato de que é preciso assumir riscos para amadurecer. O vento tremeluziu o filete de fumaça. Ele brincava com fogo antes de dormir todas as noites, imaginando controlar a chama, mesmo sendo lembrado de que isso poderia resultar em uma vexaminosa mancha de xixi na cama. Com o passar do tempo, distanciou-se das ideologias iconoclastas. Virou um mero delinquente diletante, mas manteve sua inseparável companheira, a caixa de fósforos, acomodada no canto da estante. Não há reza e a vela finda. O tempo passou, mas aquela criança ainda está lá, pirólatra. Pior, pirofágica. Pior, pirófila. Pior, piromaníaca. Pior, em busca de companhia. Foto estranha de origem desconhecida. Se alguém tiver uma pista… A ContoCrônicaEduardo FrotaLeituraLiteratura