O cajueiro nordestino

Texto de Toinho Castro


Cajueiro de Pirangi – Foto: Toinho Castro

Tempos atrás andei fazendo umas pesquisas pessoais, resgatando do fundo do baú certa poesia recifense, ou pernambucana, que não fosse João Cabral de Melo Neto ou Manuel Bandeira, nomes sempre lembrados. Dei com nomes que ditos assim parecem óbvios, mas que há muito não são muito recordados em conversas ou artigos escritos por aí, salvo quando somos atacados por uma nostalgia qualquer. Dentre poetas que vieram à tona nessa busca estão, naturalmente, Carlos Pena Filho, Lucila Nogueira e Mauro Mota. Deste último consegui um livro lindo, Elegias, de 1952. Uma primeira edição, tão bonita…

Ó Rua Real da Tôrre,
que mistérios ocultais
nos chalés mal-assombrados
que aos fantasmas alugais?
[Mauro Mota]

De Mauro Mota fui ainda presenteado, pelo amigo e livreiro Francisco Olivar, com uma belíssima peça, um pequeno volume em plaquete chamado São João do Nordeste, que traz uma palestra que o poeta proferiu no Rotary Clube do Recife, em 1952, sobre as tradições juninas da região. às voltas assim com Mauro Mota, o poeta Aderaldo Luciano apresentou-me, numa conversa, um terceiro livro que muito me interessaria. O cajueiro nordestino, de 1955, escrito a partir da monografia apresentada pelo autor ao Instituto de Educação de Pernambuco, concorrendo à cátedra de Geografia. Trabalhado para um outro público, livre de tecnicalidades de uma monografia, o livro oferece um detalhado, e delicioso, passeio pela história do cajueiro, essa árvore que nos é tão cara.

Quem no Nordeste não esteve aos pés de um cajueiro?! Meu tinha um galpão no caminho entre Recife e Cabo de Santo Agostinho, que era usada para depósito de cargas rodoviárias, mas que também servia aos passeios de fim de semana da família Castro. O lugar era perto de uma lagoa e cercado por cajueiros e pequenas casas esparsas. Ali passamos algumas tardes e lembro bem dos pés de caju fincados na areia fina, branca, como de praia. Como esquecê-los? Também jamais esquecer os cajueiros de Natal, nas dunas onde brinquei, mesmo o exemplar da praia de Pirangi, uma espécie de monstro mitológico, que mais se assemelha a uma colônia de árvores, ainda que todo aquele infinito de galhos e folhagens tenha origem num único tronco. Na verdade, numa única castanha, mágica, por certo, que ali caiu num dia perdido no tempo.

Ela virá no verão
Com as chuvas de cajus
[Alceu Vaelença]

Mauro Mota nos carrega por uma trilha que começa nos primórdios dessas terras e chega até o seu tempo presente, nos anos 1950, traçando uma genealogia do cajueiro entre nós e de nós mesmos, entre os cajueiros, para o bem e para o mal. Didático e poético o livro versa sobre a origem brasileira da planta, as extensões de terra cobertas por suas copas, seu ciclo de vida, a floração, as chuvas. As chuvas de caju, essa expressão tão bonita que anuncia uma transforação do mundo para que nos venham esses frutos vistosos, versáteis. Esses frutos dourados do sol; que se entranham na culinária do nosso povo em doces, bebidas, compondo os mais diversos pratos, saboreados nas mais diversas classes, como um fio dourado ligando as pessoas, sem pensar em suas origens, posses, crenças. Assim o cajueiro integra o cenário humano, uma simbiose com a casa, com as ruas, com o corpo.

– Não morro mais este ano, doutor. Chegou a safra de caju.

Comecei a ler o livro justo numa viagem de ônibus, a primeira em décadas, entre as cidades de Natal e Recife. Os pequenos municípios, ora esparsos, pareciam emendar uns nos outros, salvo pelos tapetes esverdeados da cana-de-açúcar. E lá estava eu, como viajante a tentar registrar com os olhos a ocorrência de um cajueiro, tentando pinçá-los na rapidez da paisagem que se deslocava, em vão. Não faltam, aliás, à narrativa de Mauro Mota. os viajantes e seus relatos. Gente que passou por terras brasileiras, por terras nordestinas, e que não pôde ignorar os cajueiros e seus frutos, e também sua madeira. Passou por aqueles caminhos, talvez o mesmo da estrada que eu cruzava, quando era uma picada, uma vereda.

Curiosamente não falta ao livro, já ali naquele tempo, o dado triste da devastação. As léguas de cajueiros tombando para virar carvão, para abrir espaços para a especulação imobiliária e o crescimento sem rumo e sem norte das cidades. A sanha do dinheiro desaparecendo com esses companheiros de galhos tortuosos, que se esgueiraram pelo litoral do Nordeste, saciaram sede e paladar de indígenas, holandeses, portugueses. Que se espalharam pelo mundo, migraram para a África, Índia… Enquanto em suas próprias terras foram perdendo espaço para as estradas, ruas, sumindo mesmo dos quintais, dos oitões. Mauro Mota faz um canto triste a essa perda e define com precisão a dor:

Nas praias arrancam as cortinas protetoras, entregam a planície mole aos dentes do mar e da ventania. O homem torna-se um necrófilo vegetal. Constrói sua morada sobre um cemitério de plantas.
[Mauro Mota]

Gente, que aventura esse livro! Uma aventura pela história por meio de uma planta. Conhecer mais do seu lugar, de si mesmo, nessas páginas é uma alegria, apesar dos tristes cenários que a civilização vai pintando sobre os bosques. Leitura fluida, vívida e cheia de cores e sabores. História, geografia, sociedade, guerras, povos, os quintais, a brisa e a sombra do cajueiro. Tudo intrincado, como seus galhos. Tudo passando rápido enquanto o mundo muda. Hoje, no Rio de Janeiro, não escuto ninguém falar das chuvas de caju. Há poucos dias, no Rio Grande do Norte, escapou da boca de alguém numa conversa casual. Para mim foi a volta de muitas coisas, muitas imagens. Sobretudo das castanhas de caju queimando em labaredas dentro de uma lata. Imagem da infância. Imagem do Nordeste.

Foto: Pxhere

Para assar, usa-se depositá-las num velho recipiente frestado de flandres mais largo do que o profundo, a fim de que as castanhas não fiquem muito superpostas e o calor se distribua bem. Lançado o fogo embaixo, comunica-se pelas frestas e o óleo das cascas logo se inflama, levantando labaredas que, à noite, parecem de uma fogueira de São João. A assadeira, de certa distância, e sempre protegendo os olhos contra o lançamento de partículas de cáustico, mexe e remexe as castanhas com uma vara, a fim de que todas se inflamem bem. O declínio das chamas indica o término da operação, assistida por adultos e crianças. A vara entorna o vasilhame de cima do seu apoio em tijolo e as castanhas se espalham no chão ainda fumegante. Jogam-lhes punhados de areia e logo começa a quebra com pedaços de pedra ou pau, tarefa muito disputada pelos meninos.

Se você chegou tão longe nesse texto a dica é óbvia. Leia O Cajueiro nordestino, de Mauro Mota. Tem uma bela edição da CEPE Editora, disponível também em e-book, que é a que eu estou lendo… Estou lendo porque não quero terminar, quero viver à sombra dos cajueiros do poeta Mauro Mota.