Aos que resistem [Poemas do livro Ovos de ferro] Revista Kuruma'tá, 29 de janeiro de 202011 de março de 2021 É uma alegria publicar na Kuruma’tá a poesia de Maria Cristina Martins. Somos amigos há muito tempo e por conta dos desvios e desvãos da tal da vida, ou das vidas, tantas vidas, paralelas, cruzadas, entrecortadas, que vivemos, acabei por perder de vista o lançamento do seu livro Ovos de ferro, no cada vez mais distante ano da graça de 2016. Sem dramas! Eis aqui a poesia de Maria Cristina, poesia que resiste com voz ativa, poesia que dá vontade de ler em voz alta e cabeça erguida, da janela do quarto para o mundo. Imagino essa cena e já imagino janelas outras se acendendo na noite, tantas incomodadas, outras tantas atentas, decorando, sorvendo os versos, para recitá-los enquanto a noite não acaba. Maria Cristina, seja bem-vinda, com seus versos luminosos, à Kuruma’tá. Toinho Castro (Editor) Poemas de Maria Cristina Martins o amor? pássaro que põe ovos de ferro.[guimarães rosa] a desobediência é […] a virtude original do ser humano[oscar wilde] naquele tempo o tempo parecia bomtempo de caminhar a favor do tempode zombar do tempode vencer o tempocorrendo e beijandoe bebendo e falando e pensandoe tentando mudar o mundoempunhando armasrequebrando os quadrisno entanto abril chegouchocando os ovos de ferroservidos em dezembroquatro anos depoisafinal o anestesista pediu acetona, tirou o esmalte prateado da unha do meu fura-bolo e aplicou a anestesia. seu rosto teria sido o último rosto que teria visto antes de morrer, se tivesse morrido naquele dia. tive o abdome remexido e costurado tipo uma roupa rasgada. de lembrança uma cicatriz que atravessa verticalmente o umbigo. uma centopeia retorcida pelo calor, que para antes de avançar para o órgão seguinte. penso que posso ter morrido e, antes de ter concluído a passagem para o mundo dos mortos, ter me transformado numa espécie de vampiro ou zumbi. zumbi, não, porque zumbi é o morto que ressuscita. vampiro é aquele que antes de morrer definitivamente sofre uma mutação. posso ter sido vítima da burocracia celestial: são benedito manda um memorando em quatro vias para são judas tadeu avisando que eu vou morrer no dia 2 de agosto de 1997, de hemorragia no baço ou isquemia no intestino. são judas tadeu guarda uma das vias, carimba as outras três e as repassa para o rh do céu, coordenado por santa helena. santa helena arquiva uma das vias, coloca mais um carimbo nas que sobram e manda para são pedro. com esse trâmite demorado, agravado por um feriado no meio do caminho, são pedro acaba recebendo essas vias bem no dia fatal, na hora da cirurgia, repassando, com atraso, uma delas para a morte, que já estava a par da situação, mas ficou com receio de me levar sem ter a ordem formal, por escrito, carimbada e assinada por todos os responsáveis. aí fiquei assim, entre dois mundos, como num limbo. pior, que nem limbo existe mais: o papa bento xvi acabou com o limbo; não sei se francisco, o argentino, revogou essa ordem. meu destino, que se encerrava naquele dia, naquela hora, prosseguiu sem previsões, sem demandas, sem razão. pode ser que ninguém venha a reparar nesse erro. as vias foram arquivadas, a operação foi dada como exitosa, e a única que realmente sabe do equívoco, a morte, não vai querer levantar uma questão que pode acabar gerando problema para ela. afinal, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco, dizem. isso tudo considerando que eu iria para o céu, claro. não estou muito certa disso. ou será que o inferno é aqui? talvez as teorias sobre mundos paralelos expliquem. morri em uma dimensão, mas continuei em outra, tendo minha vida reproduzida de forma grotesca, como a liga da justiça do mundo bizarro. será que é um carma? pecados de vidas passadas? desta mesma? talvez cada um tenha o seu demônio, representado por aqueles que mais deveríamos amar e em quem mais deveríamos confiar. talvez eu tenha escolhido errado entre a mãe real e a mãe-monstro. protect me from what i want[placebo] na caixa onde guardo meus pesadeloshá um sem número de rostos estranhosbusco reconhecê-los nas ruascom avidez pelo ignorado (sempre parece proposital) na caixa onde guardo meus pesadeloshá tentativas de fuga malogradasos pés grudados no asfaltonão andam não correm na caixa onde guardo meus pesadeloshá vozes que parecem revelaro significado da minha existênciamas não escutam os ouvidoscomo que sujos de cera a caixa onde guardo meus pesadelosagora fica em lugar seguroum pano invisível a cortinada minha própria curiosidadeum dente de alho a protegedo meu próprio veneno vii.i – gato preto estou na estaçãoesperando a barcaesperando alguémesperando o que não se deve esperarporque não vem o gato preto surge da baíaescala o muro que separa a baía da estaçãome chama para voltar à baía com eledizendo que não faz mal a poluiçãonão atrapalhará nossa missãoque eu não entendo bem o que é há uma missãoeu acho que ela está carregada de utopiasdigo isso ao gatoque me responde que ainda estou muito presaa minha vidinha correta concretaque utopia é ficar assim quietaque utopia é ficar aqui esperando a barcafazendo rimas estúpidase se achando morta eu negomas sei que ele está certoem silêncio vou com elecomo se não quisessecomo se não estivessetomada de desejo de baía campanário ainda silencioso:o dia não chegou na metadeou o som do badalo não foi capazde me tirar do sono atrasado acompanho a subida lenta porém decididade um pequeno réptilpelo umbral esquerdo da janelaonde ontem apoiei as duas mãospara tentar uma posição diferente de amor feito dançarina busco o mais altofincada no chão(não como raiz – presa imóvel)feito lutadora de arte marcialem autodefesafeito barco sem pressafeito água que ocupa o recipientevazafeito barco a motor contra correntezareagrupada se não na totalidadeum parcial que basta para seguirum vez em quando que reabastece quando se deu o septingentésimo quadringentésimotrigésimo quinto diaparei de analisar o fatonão tracei mais hipótesesme livrei da obsessão do detalhamentodo perfeccionismo da análise que se quebrem os ovose se façam omeletes A LeituraLivroMaria Cristina MartinsPoesiaResistênciaRio de Janeiro