Tem alguém aí? Revista Kuruma'tá, 18 de fevereiro de 202029 de julho de 2020 Texto de Toinho Castro Naquela época, sem tanto asfalto, sem tantos edifícios tão altos e espelhados, Natal era uma cidade que esfriava quando chegava a noite. Na esquina do Brasil, tendo às suas margens o Oceano Atlântico, a cidade era varrida por um vento que crispava-lhe as árvores, as dunas, as águas do próprio oceano e do rio Potengi. Nós, os primos, estávamos ali, em casa, no sossego da noite familiar. Eventualmente o som da gaita do meu tio e o riso dos adultos em meio ao bate-papo, as histórias que se contam quando se encontram os que andavam distantes. Os tios que não se viam há algum tempo e se encontravam porque minha mãe estava ali presente, vinda, comigo, lá do Recife, para passar as férias. Então era família reunida, os casos, a memória de uma Natal ainda mais antiga que essa que narro, ainda mais fria nas noites daqueles anos mais distantes que o Recife. No quarto que compartilhávamos, no fim do corredor, de porta trancada, estávamos esquecidos pelos adulto, distraídos que estavam pela bebida e pela conversa. Improvisamos com um abajur uma meia-luz penumbrosa, que parecia ter efeito sobre a natureza dos sons, silenciando todo alarido que vinha de fora do quarto. Como havia muitas camas e pouco chão disponível, tratamos de afastá-las na direção das paredes, abrindo espaço para dispor os itens essenciais àquela aventura de crianças desocupadas. Verdadeiras oficinas do Cão ambulantes. E o que eram esses itens? Pedaços de papel contendo as letras do alfabeto, os números e as palavras Sim e Não, um copo americano surrupiado da cozinha e uma vela (e fósforos para acendê-la). Bem, você já deve imaginar o uso mágico que daríamos a tais artefatos. Conduzir a sessão coube ao mais velho de nós, que orientou a disposição do alfabeto num círculo e o acendimento ritualístico da vela, que precisou de três ou quatro palitos para acender, o que nos pareceu um estranho presságio. A atmosfera carregada de mundo paralelos começou a desabar sobre nós. Dava pra cortar de faca, como se diz. Rezamos alguma reza, inventada ou não, que 40 anos depois não sei dizer qual foi, e que teria nos garantido alguma segurança contra espíritos mal intencionados. O copo americano da minha tia foi colocado no centro do circulo alfabético e meu primo, sacerdote-mor, descansou a mão direita, claro, sobre o copo, quase sem tocá-lo. Era necessário garantir que o copo se moveria por uma vontade sobrenatural, e não pelo esforço discreto do primo. Esperávamos isso dele, e dos espíritos. Entoamos um mantra que achamos apropriado e fechamos os olhos, até que lembramos de abri-los, ou não veríamos os resultados do contato com o Plano Astral. Meu primo, o sacerdote-mor, começou a alternar as perguntas “Tem alguém aqui?” e “Alguém quer falar?” enquanto já de olhos irresistivelmente abertos e atentos. E foi assim, de olhos arregalados, que vimos o copo se deslocar até o papelzinho tosco em que havíamos escrito a palavra Sim. O primo tirou num rápido reflexo a mão do copo, como se tivesse levado um choque e alegou que “sentiu algo”, que não foi muito bem explicado o que seria. Aquela coisa terna chamado copo americano ficou ali, junto do sim, e eu poderia jurar que ele vibrava levemente, como que carregado de uma estranha energia e bem seria capaz de produzir uma faísca, um choque súbito. Mas àquela altura estávamos já altamente sugestionados, enebriados, embriagados pelo vinho da curiosidade e do medo, duas coisas que quando combinadas disparam o nosso coração e nos torna capazes de ver coisas; e se não as vemos, as inventamos. Fato. Mas o que queríamos saber agora era o nome de quem quer que estivesse ali. Seguindo o combinado tive direito à primeira pergunta, digamos assim, mais pessoal. E então perguntei seu nome. A resposta não veio de pronto e um vento inesperado, apesar das janelas fechadas, perturbou a chama da vela. Mas como nos foi aconselhado não tirar os olhos do copo, isso foi uma coisa que percebemos somente de relance, junto com um calafrio que atravessou a todos, para nos abandonar em seguida. Foi um pausa dramática, digna de uma ópera ou de um filme B de suspense. As mãos do meu primo repousavam, mãos de menino, sobre o copo, que tinha a água até quase a borda. Pareceu-nos que a água era um elemento importante na conexão. Talvez a gente tenha mesmo lida em algum lugar que essa era a configuração ideal para fazer contato com as almas. Pensei que ali havia água, o fogo da vela, o ar que nos rodeava e ensaiava sustos e mesmo a terra… imaginei que éramos nós a terra. Simbolicamente, claro. Devaneios de menino na expectativa de uma resposta do além-mundo O sacerdote-primo-mor deu um tremelique e o copo começou a se mover em direção à letra E, depois migrou para o M e seguiu para o I de igreja. As duas últimas letras citadas pela presença foram o Z e o Y. Espere! Tem mais uma… um K. — Emizyk!? Isso mesmo, Emizyk. Seja lá o que isso fosse. Pela primeira vez na noite desviamos o olhar do copo, que jazia ainda junto à letra K, com a superfície da água vibrando ainda. Fitamos uns aos outros com desconfiança, pois Emizyk não parecia um nome apropriado para um espírito. A menos que ali estivesse uma alma gozadora, como chegaram a nos alertar, que esse tipo de brincadeira atraía mais desocupados que figuras elegantes. Mas fizemos os ritos com retidão e o tom solene necessário. Dificilmente um desordeiro se interessaria pela nossa companhia. Assim julgávamos. Mas o fato é que ali estava Emizyk a nos desafiar o pensamento, desordeiro ou não; iluminado ou mergulhado em escuridão, Emizyk aguardava uma manifestação de nossa parte. Como ele nos fez esperar pela resposta estranha, deixá-lo esperar um pouco seria um gesto de diplomacia para estabelecer limites. Não estávamos ali à disposição da pessoa… ainda que estivéssemos. De qualquer maneira cabia a nós dar continuidade à conversação com o lado de lá das paredes ectoplasmáticas que separavam nossos mundos. As mãos imantadas do primo mais velho retomaram o copo, bem como as rezas e os olhos fechados. Em meio às loas um de nós (como saber quem na confusão dos anos?) fez a pergunta cuja resposta mudou completamente o rumo daquela prosa. — Quando você morreu? — Mas eu estou vivo! — Respondeu Emizyk e saltamos de olhos serenos e rosto compenetrado para olhos arregalados e máscaras de espanto! Como assim, vivo?! Será que o mundo de lá seria como um espelho e, para quem lá estivesse, nós seríamos os mortos? Bem, a partir daquele momento passamos a considerar tudo possível e só nos restava uma pergunta. — Se você está vio, então onde você está? De onde tá falando? — Não era à toa que ele era o sacerdote-mor. Foi preciso, certeiro, deixando nosso fantasma com a obrigação ética de responder na mesma medida de objetividade. — Bem… eu estou no Segundo Mundo. Deduzimos, naturalmente que, se ele estava no Mundo… — E nós estamos no Primeiro Mundo! — Não, retrucou Emizyk. — Vocês estão no Terceiro Mundo! A partir de agora vou poupar-lhes da lerdeza mística e do vai-e-vem do copo para finalmente compartilhar o que nos foi revelado por Emizyk. Primeiro ficamos indignados por ser terceiro mundo até no plano astral, mas com as idas e vindas de perguntas, respostas e sustos, descobrimos que o Segundo Mundo de que nosso interlocutor falava era… Vênus, o Segundo Mundo, ou segunda órbita, a partir do Sol. A nossa Terra, ocupando a terceira órbita, seria o Terceiro Mundo. Isso nos aliviou o embaraço e multiplicou a ansiedade com que trocávamos ideias e descobríamos essas peculiaridades do nosso sistema solar. Espíritos, que nada! O tempo inteiro a humanidade, ou pelo menos os adeptos da assim chamada brincadeira do copo, vinha conversando com venusianos, que encontraram nessa distração um meio de comunicação eficaz. A densa camada de nuvens ácidas que envolvia o planeta providenciava uma poderosíssima antena, capaz de captar, converter, transmitir e sabe-se lá mais o que, qualquer tipo de transmissão efetuada de qualquer lugar num longo raio que extrapolava a órbita de Júpiter. Foi assim que começaram a receber chamadas do tipo que estávamos realizando. O copo com água funcionava como ponto focal e qualquer um, em Vênus, poderia responder nosso apelo. Sim, muitas vezes um desocupado atendia. E sim, quando perceberam que a gente achava que falávamos com o mundo dos mortos, começaram também a se divertir e criar suas próprias narrativas para nos distrair das nossas vidas vazias. Emizyk resolveu quebrar o protocolo e falou um pouco de verdade no nosso bate-papo, não sem criar alguma confusão. Lá em Vênus também se morre, como em, aparentemente, qualquer lugar onde floresça a vida. E lá também não se sabe o que é feito de quem morre. Especula-se, imagina-se, inventa-se. Sonhos e esperanças alimentam as muitas religiões dos que habitam o Segundo Mundo, que vive, segundo Emizyk, um tempo de ventura que já dura mil anos. Do nosso mundo eles acompanham tudo, das guerras ao futebol, e parecem satisfeitos com esse canal peculiar, não espiritual mas espirituoso, para conversar com essas almas perdidas do Terceiro Mundo e saber de suas desventuras. Quantas vezes aqueceram o coração de alguém fingindo ser um ente querido que havia partido… Em algum momento a conversa foi interrompida, no meio de uma frase, e não conseguimos recuperar naquela noite o contato com Emizyk, nem nas muitas outras noites que enfeitaram aquelas férias. Além do mais, crianças se distraem com a praia, a bola com a molecada da outra rua e com o pão doce com guaraná Antártica na calçada da avó. Emizyk se embaralhou com tudo isso e aos poucos foi ficando para trás. O copo americano, vazio, ficou bolando muitos dias pelo quarto até ser recuperado pela minha tia. Recordo que dias depois vimos Vênus, Vésper, a Estrela Dalva da canção As Pastorinhas, de Noel Rosa e João de Barro. Um planeta que brilha tanto que mereceu ser chamado de estrela. Subia no horizonte em contraponto com a Lua e sabíamos, intimamente que tínhamos uma amizade ali, a 0,28 UA (Unidades Astronômicas) de distância do nosso Terceiro Mundo. Não sabemos até hoje se era um menino ou uma garota, ou uma tia idosa ou um mestre de alguma luta marcial que só exista em Vênus. Nunca ouvimos sua voz e imaginamos, cheios de esperança, que lembra de nós. Com seu telescópio talvez observe a Terra. Talvez seja impossível falar duas vezes com a mesma pessoa em nossos planetas. Talvez agora mesmo, alguém, em algum lugar perdido desse planeta, esteja manejando o copo mágico, invocando espíritos e conversando, sem imaginar, com Emizyk. Talvez até Emizyk esteja falando de nós, da nossa conversa décadas atrás. Tentando, quem sabe, nos reencontrar. A AssombraçãoContoFantasmaFicçãoFicção científicaLeituraToinho Castro