Elegeram Daniel rei | Parte III Revista Kuruma'tá, 20 de fevereiro de 202028 de julho de 2020 Texto de Diego Franco Gonçales — Isso é bater. – O inspetor voltou a pegar a mão de Lezinho. O menino ofegava com o assombro de um recém-nascido. — Mexa os dedos. Tranquilo. Mexa os dedos. — Havia uma novidade na voz dele, um fio de seda adicionado àquela trama de sisal. — O Daniel.— O quê?— Foi o Daniel.— O que tem o Daniel?— O Daniel mandou jogar o Vítor de cima da sedinha.— Sedinha?— A sedinha é a casa da árvore. A sede, onde a gente se junta. Faz reunião da turma. A gente chama de sedinha.— Certo… E por que o Daniel jogou o Vítor lá de cima?— Mandou jogar.— Mandou jogar. Pode parar de mexer os dedos. Dói?— Não. Um pouco.— Deixa eu ver. Inchava bem onde o indicador encontra a palma da mão. Enquanto o inspetor inspecionava o local, Lezinho o observou tão de perto que sentiu alguma coisa que podia ser medo ou carinho. Dava para ver que os fios de cabelo penteados para trás rareavam, e aqui e ali já se via a pele do topo da cabeça do inspetor. Dava para sentir o cheiro de álcool do desodorante. O menino teve vontade de contar tudo. — Eu perdi a eleição.— Eleição. — O inspetor sentou-se ao lado de Lezinho — Eleição. O que você quer me contar, Leandro?–— A gente viu a eleição e quis fazer igual dessa vez na turma. Você votou?— Votou?— Não teve eleição de prefeito agora? Não foi eleição? Minha mãe votou.— É, teve. Mas eu não fui. Não sabia como fazer.— É simples. – Lezinho gostava de se sentir ensinando — Escreve no papel os nomes de quem quer ser alguma coisa e os outros fazem um xis na frente de quem acha que tem que ser.— Não, isso eu sei. É outra coisa que eu não sei. Deixa pra lá.— E se eu te explicar?— Esquece. Eu quero saber o que aconteceu nessa tal eleição de vocês.— Ah… a gente fez igual. — Lezinho perdeu o ânimo com o desinteresse do inspetor – A gente sempre escolhe o rei da turma. Hoje a gente votou.— Espera um pouco. – o inspetor levantou do sofá e foi até a cadeira da diretora. Passou a mão no espaldar acolchoado. Uma bela cadeira – Me conta. Que turma?— Eu e o Danone. O Vítor, o Daniel, o Cauê. E o Agulha e o… — e a voz de Lezinho coloriu-se de coragem – e o Tiago. Foi o Tiago que jogou o Vítor porque o Daniel mandou. Porque o Daniel virou rei na eleição.— Rei. O que faz um rei?— Você não sabe o que é um rei? — e Lezinho riu um pouco da ingenuidade do inspetor. Lá ia ele ensinar mais uma vez – Eu era o rei até ontem. O rei manda e os outros obedecem.— E que tipo de coisa você mandava?— Ah. — Lezinho pressentiu uma armadilha — Siga-o-mestre, pega-pega. Essas coisas.— Leandro. Leandro. — O inspetor deu dois passos em direção ao sofá como quem iria forçar alguma coisa. Mas desistiu e ficou parado no meio do caminho — Tudo bem. Pega-pega e essas coisas. Um pega-pega jogou o Vítor da casa da árvore.— Nossa, mas que difícil pra você entender. Vou te explicar. O Daniel virou rei. – Lezinho tentou enxergar alguma reação que confirmasse no rosto do inspetor que ao menos isso ele entendeu. Enxergou apenas sinais dúbios, mas prosseguiu mesmo assim – E ficou bravo porque o Vítor votou em mim. Só eu e ele votamos em mim. Aí o Daniel falou que ia dar um castigo. O Danone falou que não tinha isso em eleição, que quem ganha eleição não pode tudo. O Cauê falou que eleição de rei é diferente. Entendeu até aqui? — Lezinho tomava por dúvida os sinais de incredulidade que o rosto do inspetor emitia.— Entendi sim. Continua.— Então! — Lezinho já falava sorrindo. O inspetor, o inspetor!, ele ensinando o inspetor! — Eles ficaram brigando por causa disso. O rei pode, o rei não pode, maior merda. Desculpa. Eu não fiquei brigando, porque eu tinha ficado bravo, e o Tiago também não, porque é estranho. O Tiago ficou perto da porta o tempo todo. No meio da bagunça ele pegou o Vítor e jogou lá de cima. O Vítor caiu e gritou igual um macaco, sei lá. Aí o Tiago falou: “Pronto, castiguei. O rei pode”. Entendeu? O inspetor enfiou a mão no bolso e de lá tirou o pente de osso; voltou à janela e aos cobogós destruídos e ficou penteando o cabelo. Lezinho fala a verdade? Lezinho mente? E aí? Quando se virou, o fio de seda tinha desaparecido de sua voz. — Mentiroso. Sabe o que acontece se você estiver mentindo? Eu vou chamar a polícia. Você conhece a polícia, Leandro. Sabe o que eu fiz com seu dedo? A polícia vai fazer pior. Você está mentindo, Leandro? Eu vou chamar as outras crianças aqui. Conta a verdade. Aquilo ofendeu Lezinho. Havia um histórico entre eles e havia aquele dia; havia o passo irreversível dado pelo inspetor, a torção no dedo que os aproximara em estatuto; havia o sacrifício de Lezinho por um ritual de amadurecimento, a aceitação com naturalidade daquela punição injusta; havia essa promessa de enfim escapar ao lugar de menininho ao qual ele se vê obrigado por convenções que detesta, a subordinação do inspetor aos seus ensinamentos sobre a turma, sobre o rei, sobre a eleição; e tudo isso para quê? Para o inspetor pôr a sombra da polícia contra ele, para o acusar do que nunca fez, para o ameaçar mesquinhamente com a presença de crianças ali, justo agora que ele deixou de ser uma? Para lembrá-lo de seu pai entalado no corró de uma viatura? Para desconsiderar a sinceridade que sempre dispensou ao inspetor, sinal de, por isso e apesar de tudo, seu afeto? Para ter que encarar aqueles que há pouco se achavam melhor que ele por serem amigos do rei, justo ele, que agora era homem-homem mesmo, um homem assim como é homem o inspetor? Aquilo machucou Lezinho mais que a mão do inspetor. Ele sentiu vontade de vomitar. Ele encolheu os dedos dentro do tênis. Ele levantou do sofá e correu para a porta, onde foi agarrado pela cintura e suspenso do chão. — Filho da puta! Cuzão! Filho da puta!Os cotovelos bateram no rosto do inspetor e as pernas na porta, mas em instantes ele já estava de volta ao sofá e o vermelhão, ao seu rosto.— Eu te odeio! Você me machucou, olha a minha mão! Olha aqui, filho da puta! Socorro! Ele vai me matar! Socorro!— Não, não. Eu acredito. Tá tudo bem, eu acredito! Lezinho parou um segundo e olhou para aquele homem quase ajoelhado à sua frente. As coisas pareciam estar ficando mais interessantes. Agora Lezinho era um homem como o inspetor. Mas só isso? Não. Talvez mais, mais homem. Mais homem que o inspetor. Lezinho olhou para a mão machucada. O inchaço não permitia fechar bem os dedos. Batidas à porta. Alguém irado mandava a destrancar e perguntava o que diabos acontecia ali. Com o indicador da outra mão, Lezinho apontou o machucado e voltou a gritar, olhando dentro dos olhos do inspetor. A CaraguatatubaContoCrônicaDiego Franco GonçalesLeituraLiteratura