Elegeram Daniel rei | Parte III

Texto de Diego Franco Gonçales


— Isso é bater. – O inspetor voltou a pegar a mão de Lezinho. O menino ofegava com o assombro de um recém-nascido. — Mexa os dedos. Tranquilo. Mexa os dedos. — Havia uma novidade na voz dele, um fio de seda adicionado àquela trama de sisal.

— O Daniel.
— O quê?
— Foi o Daniel.
— O que tem o Daniel?
— O Daniel mandou jogar o Vítor de cima da sedinha.
— Sedinha?
— A sedinha é a casa da árvore. A sede, onde a gente se junta. Faz reunião da turma. A gente chama de sedinha.
— Certo… E por que o Daniel jogou o Vítor lá de cima?
— Mandou jogar.
— Mandou jogar. Pode parar de mexer os dedos. Dói?
— Não. Um pouco.
— Deixa eu ver.

Inchava bem onde o indicador encontra a palma da mão. Enquanto o inspetor inspecionava o local, Lezinho o observou tão de perto que sentiu alguma coisa que podia ser medo ou carinho. Dava para ver que os fios de cabelo penteados para trás rareavam, e aqui e ali já se via a pele do topo da cabeça do inspetor. Dava para sentir o cheiro de álcool do desodorante. O menino teve vontade de contar tudo.

— Eu perdi a eleição.
— Eleição. — O inspetor sentou-se ao lado de Lezinho — Eleição. O que você quer me contar, Leandro?
–— A gente viu a eleição e quis fazer igual dessa vez na turma. Você votou?
— Votou?
— Não teve eleição de prefeito agora? Não foi eleição? Minha mãe votou.
— É, teve. Mas eu não fui. Não sabia como fazer.
— É simples. – Lezinho gostava de se sentir ensinando — Escreve no papel os nomes de quem quer ser alguma coisa e os outros fazem um xis na frente de quem acha que tem que ser.
— Não, isso eu sei. É outra coisa que eu não sei. Deixa pra lá.
— E se eu te explicar?
— Esquece. Eu quero saber o que aconteceu nessa tal eleição de vocês.
— Ah… a gente fez igual. — Lezinho perdeu o ânimo com o desinteresse do inspetor – A gente sempre escolhe o rei da turma. Hoje a gente votou.
— Espera um pouco. – o inspetor levantou do sofá e foi até a cadeira da diretora. Passou a mão no espaldar acolchoado. Uma bela cadeira – Me conta. Que turma?
— Eu e o Danone. O Vítor, o Daniel, o Cauê. E o Agulha e o… — e a voz de Lezinho coloriu-se de coragem – e o Tiago. Foi o Tiago que jogou o Vítor porque o Daniel mandou. Porque o Daniel virou rei na eleição.
— Rei. O que faz um rei?
— Você não sabe o que é um rei? — e Lezinho riu um pouco da ingenuidade do inspetor. Lá ia ele ensinar mais uma vez – Eu era o rei até ontem. O rei manda e os outros obedecem.
— E que tipo de coisa você mandava?
— Ah. — Lezinho pressentiu uma armadilha — Siga-o-mestre, pega-pega. Essas coisas.
— Leandro. Leandro. — O inspetor deu dois passos em direção ao sofá como quem iria forçar alguma coisa. Mas desistiu e ficou parado no meio do caminho — Tudo bem. Pega-pega e essas coisas. Um pega-pega jogou o Vítor da casa da árvore.
— Nossa, mas que difícil pra você entender. Vou te explicar. O Daniel virou rei. – Lezinho tentou enxergar alguma reação que confirmasse no rosto do inspetor que ao menos isso ele entendeu. Enxergou apenas sinais dúbios, mas prosseguiu mesmo assim – E ficou bravo porque o Vítor votou em mim. Só eu e ele votamos em mim. Aí o Daniel falou que ia dar um castigo. O Danone falou que não tinha isso em eleição, que quem ganha eleição não pode tudo. O Cauê falou que eleição de rei é diferente. Entendeu até aqui? — Lezinho tomava por dúvida os sinais de incredulidade que o rosto do inspetor emitia.
— Entendi sim. Continua.
— Então! — Lezinho já falava sorrindo. O inspetor, o inspetor!, ele ensinando o inspetor! — Eles ficaram brigando por causa disso. O rei pode, o rei não pode, maior merda. Desculpa. Eu não fiquei brigando, porque eu tinha ficado bravo, e o Tiago também não, porque é estranho. O Tiago ficou perto da porta o tempo todo. No meio da bagunça ele pegou o Vítor e jogou lá de cima. O Vítor caiu e gritou igual um macaco, sei lá. Aí o Tiago falou: “Pronto, castiguei. O rei pode”. Entendeu?

O inspetor enfiou a mão no bolso e de lá tirou o pente de osso; voltou à janela e aos cobogós destruídos e ficou penteando o cabelo. Lezinho fala a verdade? Lezinho mente? E aí? Quando se virou, o fio de seda tinha desaparecido de sua voz.

— Mentiroso. Sabe o que acontece se você estiver mentindo? Eu vou chamar a polícia. Você conhece a polícia, Leandro. Sabe o que eu fiz com seu dedo? A polícia vai fazer pior. Você está mentindo, Leandro? Eu vou chamar as outras crianças aqui. Conta a verdade.

Aquilo ofendeu Lezinho. Havia um histórico entre eles e havia aquele dia; havia o passo irreversível dado pelo inspetor, a torção no dedo que os aproximara em estatuto; havia o sacrifício de Lezinho por um ritual de amadurecimento, a aceitação com naturalidade daquela punição injusta; havia essa promessa de enfim escapar ao lugar de menininho ao qual ele se vê obrigado por convenções que detesta, a subordinação do inspetor aos seus ensinamentos sobre a turma, sobre o rei, sobre a eleição; e tudo isso para quê? Para o inspetor pôr a sombra da polícia contra ele, para o acusar do que nunca fez, para o ameaçar mesquinhamente com a presença de crianças ali, justo agora que ele deixou de ser uma? Para lembrá-lo de seu pai entalado no corró de uma viatura? Para desconsiderar a sinceridade que sempre dispensou ao inspetor, sinal de, por isso e apesar de tudo, seu afeto? Para ter que encarar aqueles que há pouco se achavam melhor que ele por serem amigos do rei, justo ele, que agora era homem-homem mesmo, um homem assim como é homem o inspetor? Aquilo machucou Lezinho mais que a mão do inspetor. Ele sentiu vontade de vomitar. Ele encolheu os dedos dentro do tênis. Ele levantou do sofá e correu para a porta, onde foi agarrado pela cintura e suspenso do chão.

— Filho da puta! Cuzão! Filho da puta!
Os cotovelos bateram no rosto do inspetor e as pernas na porta, mas em instantes ele já estava de volta ao sofá e o vermelhão, ao seu rosto.
— Eu te odeio! Você me machucou, olha a minha mão! Olha aqui, filho da puta! Socorro! Ele vai me matar! Socorro!
— Não, não. Eu acredito. Tá tudo bem, eu acredito!

Lezinho parou um segundo e olhou para aquele homem quase ajoelhado à sua frente. As coisas pareciam estar ficando mais interessantes. Agora Lezinho era um homem como o inspetor. Mas só isso? Não. Talvez mais, mais homem. Mais homem que o inspetor. Lezinho olhou para a mão machucada. O inchaço não permitia fechar bem os dedos.

Batidas à porta. Alguém irado mandava a destrancar e perguntava o que diabos acontecia ali.

Com o indicador da outra mão, Lezinho apontou o machucado e voltou a gritar, olhando dentro dos olhos do inspetor.


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