Texto de Eduardo Maciel
Como vocês estão, queridos kurumateiros?
Espero que estejam bem. Apesar de tudo. Essa quinzena vim apresentar, a quem ainda não conhece, o mestre do cordel Zé Salvador (conhecido nos cartórios como José Washington de Souza).
Eu o conheci através de uma bela iniciativa chamada Diário da Poesia. E dali surgiu uma amizade e um bem-querer que perdura até hoje.
Nascido na cidade Tianguá, no Ceará, hoje nos brinda com sua ilustre presença na região metropolitana aqui do Estado do Rio de Janeiro.
Na infância, brincava de subir em árvores e ele mesmo fazia seus brinquedos: peões e papagaios (ou pipa, como a conhecemos pelos lados de cá). Também frequentava feiras, onde os cordelistas cearenses levavam suas maletas, espalhavam seus folhetos em meio às mercadorias e os declamavam para a alegria da garotada.
Aprendeu a ler e escrever em casa com a mãe (que além de cuidar do lar, compunha a renda familiar costurando e vendendo bolos). E usava cordéis para fixar na memória a teoria da língua portuguesa, como se fossem exercícios lúdicos. Apenas ingressou no sistema de ensino formal aos onze anos.
Aos dezoito, partiu em busca de um panorama mais agitado e foi morar em Fortaleza, capital de seu Estado, onde estudou parte do curso de contabilidade.
Em fevereiro de 1977 veio visitar uma irmã aqui no Rio de Janeiro. Nessa época, estudava e trabalhava no comércio, lá no Ceará.
Segundo o próprio: “vim pra cá pra passear, mas acabei gastando o dinheiro da minha passagem de volta e tive que arrumar um trabalho para conseguir comprar essa passagem. Continuo tentando comprar até hoje”. Até mesmo contando “causos”, tudo nele é poesia.
Em 1981 conheceu a mulher com quem vive até hoje e teve filhos, cujos nomes prestigiam Gandhi e “As Brumas de Avalon”. Para dar o melhor para a sua família, acabou protelando a conclusão dos estudos e é autodidata em tudo que faz e produz, o que para mim evidencia ainda mais o seu brilhantismo altruísta.
Desde cedo escrevia, e um dia, ao mostrar um de seus textos no liceu onde estudou, ainda no Ceará, disseram a ele que o escrito era um poema. Desde então ele se reconhece como poeta.
Durante a ditadura, foi convidado para escrever para um periódico local em Tianguá. Seu poema “Conversando com a Brisa”, no entanto, não viu a luz do dia, por ter sido considerado subversivo para aquela época. Censurado.
Já no Rio de Janeiro, continuou a escrever sem parar, apesar de ter passado anos a fio sem pretensões literárias, talvez em razão desse trauma da censura.
Das suas idas à Feira de São Cristóvão surgia um apreço cada vez maior pela literatura de cordel que conhecera no Ceará, muito embora nessa época o Zé Salvador ainda escrevesse poemas livres.
No ano 2000 foi primeiro lugar num concurso literário nacional, com o poema “Séculos”. Foi o que faltava para ele abrir sua gaveta de pérolas poéticas. Graças a Deus.
Ato contínuo, participou de trinta e cinco antologias com a editora que o havia premiado, e depois de mais outras cerca de vinte obras em coautoria, para instituições públicas e privadas.
Sua estreia oficial no mundo do cordel foi em 2006, quando escreveu “Pinochet e a Tentativa de Tomar o Inferno”, por ocasião da morte do ditador chileno. Nessa obra, pegou emprestado o “Inferno de Dante” e nesse cenário fez com que o ditador fosse realmente punido, já que ele havia escapado das devidas reprimendas em vida.
Continuou no ofício do cordel, mas de novo sem publicar. Isso mudou drasticamente em 2014, ano em que se aposentou.
Sabem como funciona a assim chamada “aposentadoria produtiva”, né? Então. Mais pra frente eu conto.
Conseguiu notoriedade com o cordel “Brincanagens”, inspirado em confraternizações com seus antigos colegas de trabalho. E a essa altura já escrevia poemas com métrica e rima, tendo dominado sozinho esse leão arredio da poesia regrada. Na jaula do leão, compôs vários cordéis e sonetos. Difícil, eu bem sei.
Mas o melhor vem a seguir, quando Zé Salvador se rendeu ao “Orkut”, lá nos primórdios das redes sociais como as conhecemos hoje. Nas comunidades literárias dessa rede, fez intercâmbio com diversas figuras que o ajudaram a trazer sua técnica à perfeição.
Pois bem. Lembram que eu mencionei que sua aposentadoria foi (ou melhor dizendo: tem sido) produtiva? Justamente nessa época publicou um livro de sonetos, ao qual deu o título de “Vai um Soneto aí com Zé Salvador?”, proporcionando aos seus leitores sonetos decassílabos heróicos. Esse livro não contou com a máquina editorial, no entanto. Foi sendo vendido no boca a boca mesmo, em uma aula de militância poética que nos deu o mestre Zé.
Junto com o livro, foi fazendo cordel assiduamente, num fluxo incessante entre produção e publicação, que perdura até hoje. Inclusive, ele já tem sessenta cordéis publicados, “mais um tanto que estão terminados aqui em minha mesa esperando a oportunidade de publicar”. Aspas dele.
Em 2019 foi primeiro lugar, com o cordel “Mochila que Guarda Medos”, em concurso promovido pela Biblioteca Anita Porto Martins. E nessa altura já transformava crônicas em cordel, o que prova de forma incontestável sua fluidez literária. Esse trabalho itinerou voluntariamente por escolas no Rio de Janeiro, no formato de “oficinas de cordel” por ele ministradas, fazendo do mestre Zé uma figura importante no segmento educacional. Fascinante.
Hoje em dia, Zé Salvador é vice-presidente da UBT (União Brasileira dos Trovadores), em razão de suas várias trovas premiadas e seu comportamento resiliente. Guarda em sua estante o troféu “Arte em Movimento” e se orgulha disso. Também, né? Coisa para poucos. Poucos e bons, eu diria.
Escreve para o portal literário “Entre Poetas e Poesias”, e também é comissionado para escrever cordéis por encomenda.
Palavras do Zé: “todo dia eu escrevo poesia, não tem um santo dia que eu não escreva”. Talvez isso o tenha colocado no lugar de membro elegível da Academia Brasileira de Cordel, onde estão vários de seus amigos. Corre a boca pequena que, com a triste e trágica passagem de Moraes Moreira, ele ocupe a sua cadeira vitalícia na Academia. Vamos aguardar. E torcer.
Ele mesmo, quando perguntado sobre títulos e comendas, se diz despreocupado, por ser “agradecido demais pelo dom de escrever”. Bem que eu disse que ele era altruísta…
Como tem acontecido com todos nós, sofre os impactos da pandemia, e com isso teve que interromper os trabalhos em cordéis coletivos no Nordeste. Mas tudo isso vai passar, e se Deus quiser ele concluirá esse lindo trabalho.
Para ele, “a literatura de folhetos do Nordeste por um tempo foi tratada como uma literatura menor, sendo que uns até a enxergavam como subproduto do folclore”.
Como nos ensina: “por um longo período de estudos sistemáticos sobre a literatura de cordel, a visão sobre esse trabalho era a de um produto coletivo, desprezando-se o criador e dando foco apenas no objeto da criação. Essa tendência se confirmou nas pesquisas de Silvio Romero, Leonardo Mota e Gustavo Barroso, quando foi Romero quem primeiramente usou no Brasil o verbete cordel. O pai do cordel brasileiro, Leandro Gomes de Barros, por outro lado, foi um dos caras que mais divulgou o cordel de folhetos no país.. De qualquer forma, o cordel para mim é algo que valorizo muito, principalmente quando ele está dentro da métrica. Porque o cordel, composto de 8 a 16 páginas, tem que ter a base, o tripé da métrica (com as sete sílabas tônicas ou poéticas) , da rima e da oração. Se não tiver esses três elementos, o texto não é um cordel. Mas existem vários tipos de cordel por aí, como o “martelo agalopado”, “martelo alagoano”, “peleja”, “galope à beira-mar”, “oitavão rebatido”. Por isso, se não for regrado, não vale. No Nordeste, onde os cordelistas são bem mais rigorosos, se você for falar de “cordel de pé quebrado”, podem até fazer chacota de você. E o “repente”? É cordel? Bem, ele é um primo do cordel, porque cordel vem de cordelista de bancada, enquanto o “cantador” vem com a viola ou pandeiro, sempre com um apoiador. Tem “cantador” que canta a obra de outros, e o “repentista” que cria ali na hora.”
Celebrado por grandes nomes da pesquisa de cordel como Elis Regina Barbosa Angelo e Sylvia Regina Bastos Nemer, continua usando o seu chapéu com esse sorrisão franco que podemos ver na foto.
Mas Edu, conta pra gente! O que será que o Zé Salvador deseja despertar no leitor? Vou deixar pra ele mesmo responder: “eu gostaria de despertar o prazer na leitura, pra que ele fique preso à leitura e goste da leitura. Ou então, fazer com que ele se sinta bem. Que tenha curiosidade pelo tema, e que eu possa passar alguma informação com aquilo que escrevo pra ele. Conhecimento, prazer e bem-estar”. E nós temos, mestre Zé. Bem-estar é o que não nos falta ao lermos o seu legado!
Obrigado demais por me deixar compartilhar um pouco de ti aqui na revista.
Salve, mestre Zé Salvador!
Contato Instagram: @ze.z.salvador
Não dá pra não seguir!
Gratidão meu caro Eduardo Maciel, Deus te reserva as benesses provenientes de suas ações e são muitas as boas ações que tens praticado, por assim ser, serão boas as tuas colheitas.
São impagáveis as tuas palavras ditas a meu respeito na matéria aqui na KURUMA’TÁ publicada.
Um balaio de coisas boas pra ti.
Quando passar essa “bendita” epidemia, e estiver sessado esse recolhimento social, quero te abraçar.
Deus te abençoe sempre.
Zé Salvador.
Querido mestre Zé, também anseio por um abraço à moda antiga, pré pandemia. E não precisa agradecer não. Toda homenagem ainda será pouca para ti.
Tive o grande prazer de conhecer o Zé Salvador em visita ao Diário da Poesia. Ele é de uma simplicidade e conhecimento sem igual! Vale muito conhecer uma de suas obras! Reportagem com uma homenagem belíssima!!! Parabéns Edu Maciel e Revista Kurumatá!
Ah, Eric! Muito obrigado pelas palavras. São esses comentários que me fazem sentir esse meu espaço de fala aqui como um cantinho con um diário, onde posso homenagear e colocar minhas impressões. Você sugeriu essa pauta linda, e eu pesquei na hora. Falar do Zé é uma delícia! Obrigado de novo!