Desvirado pra lua Revista Kuruma'tá, 16 de junho de 202011 de março de 2021 Crônica de Maria Cistina Martins “Sei que não pode sair, tio”, eu disse. Que homem chato, aquele de máscara, e nem pra comprar uma bala! Vi duas garotas saindo de um carro, do outro lado da rua, com quentinhas e garrafas de água. Atravessei, me livrando do mascarado e doido pra descolar um rango. Mas já tinha endereço e quantidade certos: uma família que “morava” num canto de calçada. Elas já vinham lá de cima e estavam indo direto na população de rua. “Eu também não tenho casa, não”, disse. Não dava pra perceber, estava de tênis, blusa e bermuda mais ou menos limpas. Não era muito verdade, e também não era mentira. Tenho casa, mas não posso voltar desde ontem, me meti quando meu padrasto batia na minha mãe. Acabei apanhando também e sendo expulso. Só deu tempo de pegar umas roupas e enfiar na mochila. O que a mãe podia fazer? Não deu em nada ir à polícia ano passado, só deixou o cara com mais raiva. Falei pra ela de umas pessoas que ajudavam mulheres assim, mas ela estava sem coragem. Quando meu padrasto soubesse, e ele ia saber, ficaria pior. Coragem ela queria pra matar o desgraçado, que nem uma amiga, que depois se mandou pra bem longe. “Amanhã a gente vem de novo, tá bom?” Fiz que sim com a cabeça, pensando “mais um dia sem comer não mata. Se eu não morrer antes desse troço aí que geral tá falando”. Devo ter pensado alto, elas ficaram tristes. Eu não, já me acostumei. A mãe sempre diz que nasci “desvirado pra lua”. Sei não. Desde a ocupação que teve lá na escola, tem uns colegas falando umas coisas diferentes, políticas, umas palavras difíceis, ainda não consigo entender tudo, mas fazem mais sentido do que as palavras da mãe. As pessoas acham que na perifa só tem analfabeto ou burro. É que só estudar não garante nada, não. Não tem espaço pra todo mundo, ainda mais pra gente. A gente tem que se esforçar muito mais pra conseguir qualquer coisa. Agora só espero arrumar algum até o fim do dia. Dinheiro, rango, carinho. Sei que tá mais difícil, as ruas mais vazias, lojas e bares fechados, restaurante não tá podendo doar, pra não juntar muita gente. Quem sabe pelo menos não descolo umas máscaras divertidas? Como será que tá a mãe? Quando eu for maior, vou livrar a gente daquele cara. Se der pra resolver na boa, no correto, melhor. Mas se for necessário, terá de ser… Como é mesmo que os colegas falam? Autodefesa. Preciso ficar mais velho e mais forte, me organizar. Torcer pra dar tempo. Se eu sobreviver a esse troço aí que geral tá falando, um dia salvo a minha mãe. Arte original de Maria Cristina Martins A ContoLeituraLiteraturaMaria Cristina MartinsQuarentena