Um noite no ferro-velho de Bodoni

Texto de Toinho Castro


Nesse pandêmico e quarentênico ano de 2020 o planeta Marte está em pauta. Graças às aspirações megalomaníacas de um certo Elon Musk que, a jogar foguetes para o alto, pretende enviar até lá uma missão tripulada, quiçá colonizadora. Quem que já esteve em Marte, como eu, bem sabe que essa tarefa não é para bilionários mas para poetas. Quem me passou esse ensinamento e me levou pelas dunas vermelhas do quarto planeta a partir do sol foi ninguém menos que Ray Bradbury.


Sentamos eu e Ray, lado a lado, na beira do rio. Logo atrás de nós jazia um foguete abandonado, no ferro-velho do nosso amigo em comum, o sonhador Fiorello Bodoni. Da última vez que o vimos já estava doente… lá longe os foguetes, rumo a Saturno ou Vênus, riscavam o céu desde o horizonte num arco. Eu e Ray sorríamos feito crianças que, afinal, éramos. Brindamos com nossos copos cheios de licor de dente-de-leão aos foguetes, ao espaço e aos sonhadores, como Bodoni. O rio estava sereno e as coisas não haviam mudando muito naquele arrabalde. Parecia que o progresso inteiro havia avançado noutra direção, desviando daquele trecho do rio, do ferro-velho, daquelas ruas escuras, de casas com janelas amareladas pela luz das antigas lâmpadas.

Isso aqui é um ermo, Ray. — Eu falei.
Você não viu isso aqui ainda antes do ermo. Quando Bodoni montou o ferro-velho nada havia por aqui. A outra margem do rio ainda não havia sido aterrada. Bem ali, disse-me apontando com o dedo trêmulo, havia uma vacaria e para aquelas bandas, tudo que havia era um bar suspeito chamado A Cabana das Ostras. Fui lá uma vez com Bodoni e o velho Bramante. Pra nunca mais.

Caímos na risada, eu conhecia a fama da Cabana das Ostras, que já não existia há anos. Tudo ali era uma inexistência. Tudo havia ficado pra trás. Mesmo Bodoni havia ido embora depois que seus filhos cresceram e seguiram seus próprios rumos, um deles em direção às estrelas. Bodoni não chegou a ver esse sonho se tornar um outro sonho, a que chamamos de realidade. Nesse instante um outro foguete se ergueu na plataforma, como uma espécie de sinal, uma lembrança do que somos feitos. De que somos essa fuga contínua para fora, mar afora, céus afora. Olhei para Ray e sabia que ele pensava em Bodoni e no foguete adormecido no ferro-velho que, como tudo ali, tinha uma vida latente. Ele tirou do bolso da jaqueta uma pequena caixa de madeira e ficou com ela nas mãos por um tempo, a revolvê-la entre os dedos. Na superfície lisa da madeira reparei que havia pequenas estrelas incrustadas, feitas de algum metal que talvez fosse bronze ou latão, ou alguma liga que não é desse mundo. Algo caído do céu.

Depois de me olhar no olhos em silêncio, co a caixa numa das mãos e a outra segurando o copo de licor, que bebericava de vez em quando, ele abriu um leve sorriso, iluminado por todas as luzes distantes que nos rodeavam. Por fim deu uma pequena sacudida na caixa e escutei que algo sacolejava ali dentro. Ao abri-la revelou seu secreto conteúdo: uma chave. Ray vinha carregando isso com ele há anos, desde a ultima vez que vira Bodoni, no hospital.

— É a chave do ferro-velho. Bodoni me deu para guardar, no hospital. 

Eu sabia o que ele tinha em mente, desde o momento em que ele me ligou, propondo irmos beber na beira do rio, junto ao ferro-velho, em honra ao querido Bodoni, que se vivo fosse, estaria fazendo aniversário naquele dia. 

Ray virou a chave na fechadura e abrimos o grande portão do ferro-velho. Ele caminhou até o pequeno escritório de madeira, ali nos fundos e fez com que algumas lâmpadas vagas acendessem e iluminassem, diante de nós. o foguete. Nossos olhos estavam cheios de lágrimas… de saudade, espanto, felicidade e melancolia. Forçamos a portinhola do foguete, entramos naquela engenhoca saída da cabeça de Bodoni e era como se entrássemos nos seus sonhos. Ray estava com o dedo no botão de ignição e não fazíamos ideia do que ia acontecer, uma grande explosão ou um grande silêncio. Se ali não fosse o ermo que era, se houvesse por ali um menino ou um gato sorrateiro, testemunharia o ferro-velho ganhar vida e o foguete sacudir seus metais em meio a ruídos e faíscas, e escutaria o gargalhar de dois velhos amigos, dois velhos companheiros, meio bêbados de licor de dente-de-leão, seguindo rumo ao espaço, a Alpha Centauri ou Sagitário A*, para nunca mais voltar.

Para Ray Bradbury, no seu centenário.
Inspirado pelo conto O foguete, publicado em 1950

Ray Bradbury. Foto: Reprodução.

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