Dois hotéis em noites distantes Revista Kuruma'tá, 21 de setembro de 202021 de setembro de 2020 Texto de Toinho Castro Foto de Toinho Castro Certa vez viajei a Foz do Iguaçu, para conhecer as Cataratas. Eram férias bem vindas num período difícil do trabalho, pouco animador. Esperava, talvez, que a monumentalidade da natureza aplacasse o que quer que me afligisse. Mas nada disso interessa ao que vou escrever nesse texto. Tudo que importa é uma foto. É verdade que é possível que a foto importe por tudo que falei antes… a expectativa da grandeza das cataratas, o trabalho que me angustiava, a súbita sensação de que tudo estava por ser alterado. Talvez… Na primeira noite fui à janela do quarto do hotel, e reparei no cenário que se apresentava. A lateral de um prédio que hoje, na memória, imagino como o hotel vizinho; suas pequenas janelas, quase todas fechadas, os nichos dos aparelhos de ar-condicionado, as linhas retas e sem imaginação, o acabamento prosaico, de época. Acima pairavam uns céus avermelhados, certamente pela emanação da iluminação pública, e logo à frente os prédios da cidade. Nada que me dissesse que perto dali as águas do rio Iguaçu despencavam com violência e ternura no abismo geológico cavado pelo tempo. Poucas janelas acesas me acenavam de longe; eu mesmo era uma janela acesa na noite de Foz do Iguaçu. Lá estava a lâmpada do meu quarto presa ao teto, alimentada pela energia da usina de Itaipú, aquela monstruosidade, logo ali perto, ronronando, moendo as águas do rio para gerar a eletricidade que avermelhava as nuvens. Peguei a câmera e voltei à janela. Enquadrei a noite, o hotel vizinho, sabendo que tudo que eu teria dessa foto era a melancolia de uma cidade pequena e, àquela hora, silenciosa. De todas as fotos que tirei nessa viagem, essa é a que mais permaneceu como retrato daqueles dias. Havia as cataratas, toda aquela beleza das cataratas desabando sobre mim, passeios, lugares novos, sabores, paisagens… e o que fica de tudo isso é o noturno dessa foto. Minha breve solidão naquele quarto de hotel numa cidade tão longe de tudo. Li no Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams, que nos momentos de tensão cada pessoa emite um sinal, algo como uma frequência que “simplesmente comunica uma noção exata e quase patética do quanto a criatura em questão está longe de seu local de nascimento”. Eu estava, naquele instante, longe demais de Natal, com suas dunas de areia fina e o vento sempre a soprar. Longe demais do Recife onde cresci e por onde vadeei por tantas ruas e noites como aquela. Longe demais do Rio de Janeiro, de onde vim, atravessando a madrugada brasileira num voo gelado, que fez uma breve escala em Curitiba, da qual vi somente o aeroporto e as luzes cintilantes que se afastam na escuridão. Roland Barthes, em seu livro A câmara clara, fala do Punctum, que é algo que se sobressai numa foto, que a atravessa e chega a nós num sobressalto. “É esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”, diz Barthes. Naquela noite inteira havia um Punctum, que não estava na fotografia, mas que era justamente ter feito aquela foto, ter clicado, a partir da janela, aquela paisagem inóspita, feita de prédios e janelas, aquele céu alaranjado. Um ato que me traspassava, um alfinete que me prendia como a uma borboleta num daqueles quadros que assombram os museus de história natural. E desse ponto de vista, preso àquela janela, que recupero aquele instante sempre que vejo essa fotografia. Anos depois, vagueando pela web, dei com essa fotografia, da fotógrafa inglesa Natalie Curtis, e revivi o mesmo sentimento, de estar debruçado numa janela em Foz do Iguaçu. Pareceu-me uma foto análoga à minha. Nada sei sobre ela, sua história, sobre como se deu esse clic, em tempo e lugar certamente muito distinto. Não sei se o que Natalie sentia ou pretendia, se pretendia algo, ao enquadrar essas janelas de hotel, esse céu, esse letreiro luminoso que bem poderia estar na minha foto. Nada saber sobre essa fotografia, datada de 4 de junho de 2007, permite que ela me fale da mesma maneira que a minha foto me falou, permite que ela me faça a mesma pergunta ainda sem resposta. “Beverly Grove, 4/6/07 from Vapours © Natalie Curtis 2007” A AfetoFotografiaFoz do IguaçuMemóriaToinho CastroViagem