Três da madrugada, um poema inédito de Braulio Tavares Revista Kuruma'tá, 6 de outubro de 20206 de outubro de 2020 Outro dia fizemos, eu, Aderaldo Luciano e Numa Ciro, um bate-papo ao vivo, no Facebook da Kuruma’tá, conversando sobre a obra de Braulio Tavares e sua presença no cenário da cultura brasileira, isso por ocasião dos seus 70 anos e também por conta da campanha de financiamento coletivo, para edição dos seus livros A espinha dorsal da memória e Mundo fantasmo, pela Editora Bandeirola. Ele não participou da conversa mas acompanhou tudo e lá pelas tantas mandou a seguinte pergunta: Posso enviar um poema inédito para o saite?! Ele se referia ao saite que a Kuruma’tá organizou em homenagem a ele, com textos de muitas amizades. Bem, a resposta a tal proposta, naturalmente, foi Claro! Sempre vamos querer um poema inédito do Braulio. E aqui está… Toinho Castro, editor Três da madrugada Já são as três da madrugada.Estou bebendo na cozinha.O dia pertence a todos;a noite é minha. Entre um copo cheio e um vazioentre uma carne quentee um vinho friomeu olhar corre as paredescomo se acompanhasse uma lagartixaque ninguém mais vê. E chega à lata de lixoonde, por baixo da tampa,emerge a cauda de um bicho.Uma cauda que se mexee diz: “Não morri ainda.” Um rato? Um gato? Um cachorro?Um bicho que diz: “Não morro,não me entrego, não desisto,sou teimoso como um Cristoque volta, ao terceiro dia.” Que carrasco deixariaum crânio decapitadodizer: “Não vou ser jogadodentro da vala comum, pois eu não sou qualquer um;sou Eu, sou um indivíduo,não sou o mero resíduodo que foi vivo e morreu;sou isto, sou sempre um Euque não se repetirá,e glória maior não hádo que o mero existir,o perceber, o sentir,o responder, o falar,o ser, o haver, o estar. “Ser parte do turbilhãoonde a Carne e a Razãodesenham seu pas-de-deux;onde o diabo e o bom deussoldam a sua aliança;onde a guerra aspira à dançae a dança dilui a guerra;e o corpo é mais um planetasacrificado à Ideia;onde a Terra é uma carnequeimada por Prometeu?Quem lhes pergunta sou eu,cabeça decapitada;um corpo que não é nadae retorna à terra fria…” Que carrasco deixariauma cabeça falantedizer tais coisas dianteda multidão boquiaberta? Não, não! A coisa mais certaé queimá-la em mil fogueiras;cabeças são feiticeirasbotando o mundo em perigo:porta-vozes do inimigo, cassandras da perdição,arautos do armagedon…Não! Que ninguém ouça o somdinamitando os contentes. Pois entre os seres viventessomente uma lei vigora:a de ainda estar vivopara ver romper a aurora.Viver; viver o momentoter aceso o pensamentoter o corpo em movimentomesmo que o mundo se acabe.Viver a vida de quem“tira de onde não tempra botar onde não cabe”. E assim passa meu olhare chega à lata de lixoonde momentos atráseu vi o rabo de um bicho…Era uma tira de plástico,escuro, comprido, elástico,que um vento qualquer mexeu.Não era bicho nem nada.Era a cabeça cansadade pensar tanto; era Eu. Participe da Campanha de financiamento coletivo dos livros A espinha dorsal da memória e Mundo fantasmo, de Braulio Tavares A Braulio tavaresLeituraPoesia