Sonho, Lama & Caos Revista Kuruma'tá, 7 de outubro de 20209 de outubro de 2020 Texto de Toinho Castro Para Beval Freitas Hoje sonhei que o Pete Townshend dava a seguinte declaração sobre o Who:— The Who é como um parque de diversões. você liga os brinquedos e lá está a música. No sonho eu citava essa declaração para o Kleber, enquanto explorávamos um manguezal que restava perto do Shopping Recife, num cenário dos anos 90, muito diferente de como deve estar hoje, depois da via mangue e ocupação imobiliária daquele trecho da rua Antonio Falcão, que leva da Imbiribeira até a praia. Toda a área do Shopping Center Recife, e seu entorno, era um manguezal. Lembro que havia um cano, uma tubulação, que cruzava parte do mangue e era caminho da meninada aventureira para a praia. atravessar pelo cano era um rito de passagem… foi tudo aterrado e testemunhei boa parte desse processo, que é, essencialmente, um processo de perda. em múltiplos sentidos. Perdemos o mangue, perdemos a aventura do cano, perdemos essa sensação de transição até a praia. hoje é prédio, prédio, prédio e de repente, praia. Antes havia uma espécie de desconstrução até chegar na praia, mesmo considerando os prédios da orla. parece bobagem, e é bobagem, e falta-nos bobagem. Bobagem é coisa séria. Acostumados que somos a dar sentido às coisas, ponho-me a pensar sobre os possíveis significados desse sonho, eu e Kleber com os pés enterrados na lama do mangue até a canela, conversando sobre uma declaração do Pete Towshend. Talvez fale do cosmopolitismo daqueles manguezais, das antenas enfiadas na lama, atentas ao mundo apesar de estar naquela Recife dos anos 80 e 90, ou talvez dar sentido a um sonho assim seja somente um péssimo hábito que precisamos combater. E seja, ao fim, somente isso, eu, Kleber, Pete Towshend e o manguezal. E isso não é pouco. De súbito, enquanto escrevo essas linhas, já pensando em finalizá-las, recordo de uma ideia subjacente na minha infância no Recife, de que o mangue era sujo, era lama, algo para ser limpo. Uma ferida aberta na cidade. Impressionante como a ideia de limpeza pode ser poderosa, colonizadora e contaminante. Talvez seja a principal ideia que move a força branca, conservadora e masculina sobre a terra: a limpeza. Do mundo, do corpo, da alma. Porque é tudo sujo. Aterrar o mangue, substituir o caos das florestas pela organização das plantações. O mundo enquanto porcelanato. Dito isto, recordo certa vez que entrei na livro 7 e dei de cara com esse livro, do poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, ilustrado com as fotografias de Maureen Bisilliat (Meu amigo Roberval vai lembrar desse livro). Aquelas impressionantes fotos das crianças se refestelando na lama do Capibaribe. Quanta liberdade, que frescor… me vieram à mente as imagens dos elefantes deitando na lama, para dissipar o calor africano. “Aquele rioera como um cão sem plumas.Nada sabia da chuva azul,da fonte cor-de-rosa,da água do copo de água,da água de cântaro,dos peixes de água,da brisa na água.Sabia dos caranguejosde lodo e ferrugem.Sabia da lamacomo de uma mucosa.Devia saber dos polvos.Sabia seguramenteda mulher febril que habita as ostras.” (de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto) Fomos nos afastando, nos afastando da lama do mangue. Aterrando, fazendo ruas, asfaltando as ruas, construindo, construindo prédios. Hoje os prédios nem tem mais apartamentos no térreo. No térreo ficam as portarias, e acima das portarias, dois ou três andares de garagens, e só então as casas, evitando o mundo. Todos na torcida para que o mundo seja límpido, branco, imaculado, revestido, recoberto, sem compreender que o mundo é detrito, resto de uma grande e primordial explosão que se dissipa universo afora. O universo é uma onda de choque que desarruma. A mecânica celeste é ilusória. Pode ser que seja uma memória falsa, fabricada, mas lembro de minha mãe me dizer que na primeira vez em que ela foi morar na nossa rua, na Imbiribeira, a rua era estreita, com uma casinha aqui e outra ali, margeada ainda por terrenos baldios e manguezais. Sempre imagino essa cena como noturna, com as janelas dispersas emanando a luminosidade parca e amarela das velhas lâmpadas incandescentes. Um mundo espectral. “assistíamos tve o caranguejoatravessou a sala,deixando em todos a sensaçãode que estávamos errados,que ocupávamosum espaço indevido,que éramos bandidos,ladrões, saqueadores de mundos.assentamos nossa moradanuma rota de migração,no caminho lúdicopara a toca da namorada.era um fóssil,o caranguejo das erasque jaziam sob o assoalho,testemunha do mangueque minava aindaas fundações do edifício inês.pergunto-me o que ali ele enxergavase as paredes,o brilho azul da telaou o que lhe ditava a memória,a terra negra, úmida,o emaranhado de galhose raízes, as folhas pendentese seus pares,à meia-luz noturna da lua.éramos então os fantasmas,o futuro irreconhecível.habitávamos épocas distintase nos encontramosnum lapso, num vértice,numa falha narrativanas nossas vidas mínimas.” (de Toinho Castro, em Lendário livro) Tudo foi sendo empurrado “para fora” da órbita civilizada, até que do mangue restou um canal, convertido em esgoto a céu aberto. Tal é a noção de mundo que temos. Isso a que chamamos de civilização é uma camada mal posta de cal, tóxica e aniquilante, mas mais para quem está acima dela. Embaixo, a vida ferve, fermenta, erode, consome, pronta a irromper convulsionada. “O que viveincomoda de vidao silêncio, o sono, o corpoque sonhou cortar-seroupas de nuvens.O que vive choca,tem dentes, arestas, é espesso.O que vive é espessocomo um cão, um homem,como aquele rio. Como todo o realé espesso.Aquele rioé espesso e real.Como uma maçãé espessa.Como um cachorroé mais espesso do que uma maçã.Como é mais espessoo sangue do cachorrodo que o próprio cachorro.Como é mais espessoum homemdo que o sangue de um cachorro.Como é muito mais espessoo sangue de um homemdo que o sonho de um homem.” (de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto) Fotos: IMS – Instituto Moreira Sales A CrônicaEspeculação imobiliáriaMangueMemóriaRecifeRio CapibaribeSonhosToinho Castro
as transformações na cidade fazem a gente pensar que tipo de cidade é essa que vivemos q destroi as coisas naturais e vive cada vez mais cinza. Texto maravilhoso Responder