A fábrica da Tacaruna e a descoberta de Austro-Costa

Texto de Toinho Castro


Em 22 de março de 1986, eu e Roberval fomos ao show do RPM, lá no Centro de Convenções, no Complexo de Salgadinho, entre o Recife e Olinda. O RPM, com Paulo Ricardo à frente, era a banda do momento no Brasil, tocando até encher o saco em todas as rádios com vários hits do seu primeiro disco, Revoluções por minuto. A gente não curtia aquilo, mas Roberval trabalhava, ou estagiava, ou sei lá o que, no jornal da praia, jornalzinho que circulava na praia da Boa Viagem, e tinha dois ingressos promocionais, para fazer a cobertura do show, que prometia um padrão internacional como espetáculo, para o periódico praieiro.

Não lembro da gente ter se divertido ali. Acho que começou tarde, fez muito barulho, não do bom, e terminou ainda mais tarde. A gente que era liso e não tinha carro, e de repente estávamos diante do problema que era voltar pra casa àquela hora. O Centro de Convenções ficava longe demais de onde a gente morava, e seria coisa de pegar dois ou três ônibus naquele começo de madrugada. Um pra sair dali até o centro e outro pra chegar na Imbiribeira. Outro problema era um ônibus passar ali naquele ermo em meio ao breu.

O que você que me lê precisa entender é que aquele lugar era um meio de caminho entre duas cidades, sem residência alguma à vista. A gente só via os carros indo embora, o lugar se esvaziando, nenhuma carona pintando. Nos restou caminhar até o sombrio ponto de ônibus não tão mais próximo, em frente a fábrica da Tacaruna, que é, naturalmente, uma fábrica abandonada.

Fachada da edificação, c. 1900.

Construída para ser a Usina Beltrão, e tendo sua construção concluída em 1895, acabou por virar uma manufatura de tecidos e em 1982 foi desativada. Muitos planos foram feitos para ela mas até hoje segue vazia, se deteriorando e assombrando o Complexo de Salgadinho. E lá estávamos eu e Roberval, às uma e trinta da madrugada, esperando uma ônibus fantasma que nunca viria, em plena escuridão. Hoje existe um Shopping Center em frente à Tacaruna, do outro lado do canal, mas há quase 35 anos… pense! À nossa frente os carros passavam faiscando nas vias expressas que conectam as duas cidades, enquanto conversávamos sobre o que conversávamos, ou seja, discos, músicas, livros, espíritos. Impossível não falar de fantasma na situação em que nos encontrávamos. E quando tudo já estava bem ruim, vimos que um camburão da polícia, uma clássica Veraneio, vinha se aproximando devagar, chegando junto, e a gente ali, tipo, que merda.

— O que vocês estão fazendo aqui?
— Esperando ônibus. A gente tava num show no Centro de Convenções.
— Aqui não é um lugar legal pra vocês esperarem ônibus. Entrem aí, a gente vai deixar vocês no Derby.

O Derby era a civilização mais próxima, com um bom sortimento de ônibus, mesmo às duas da madrugada. O negócio era entrar no camburão sem acreditar que a gente seria deixado no Derby. Dois perdidos numa noite suja… onde fomos nos meter? Bem, até ali… num camburão da PM. Mas contra nossas piores e bem fundamentadas expectativas, o caminho até o Derby foi cordial, gentil mesmo, pontuado por algum bate-papo e o vento entrando pela janela. Da calçada demos adeus à nossa inesperada missão de resgate e dali pegamos um ônibus para o centro, e na Dantas Barreto entramos num Bacurau do Jordão Baixo ou Alto, Destination: Home!


Essa é uma história que gosto de contar e ela sempre surge quando o tema da conversa é sobre essas experiências, esses acontecimentos miúdos da vida, muitas vezes estranhos, e a té perigosos, mas que se tornam engraçados com o passar dos anos. Contar uma história assim também é ua oportunidade de se reencontrar com uma versão de si mesmo, que você não vê há muito tempo. Roberval não lembra dessa história, mais um motivo para eu contá-la e recontá-la. Por mim e por ele.

Recentemente dei com os costados na Tacaruna mais uma vez, virtualmente, é claro. Devo ter comentado essa história com alguém e isso atiçou minha curiosidade pela velha fábrica, que eu sempre fazia questão de contemplar quando passava de ônibus no caminho entre Recife e Olinda. Com mais de um século de existência, a fábrica tem uma história longa e confusa, sujeita aos humores da economia açucareira de Pernambuco no século passado, às idas e vindas dos caprichos do estado e também às ideias do empresário Delmiro Gouveia. Há um bom material sobre a fábrica na internet, inclusive um artigo da Fundação Joaquim Nabuco. Mas no furdunço da internet encontrei o documentário Usina Beltrão e Fábrica Tacaruna, de Lucas Lobato Ferreira, baseado no livro do historiador Limério Moreira da Rocha, Usina Beltrão e Fábrica Tacaruna: História de um empreendimento pioneiro. A partir de uma entrevista com o próprio Limério, e imagens da fábrica e seu entorno, mergulhamos nos muitos vieses de uma história riquíssima que, ao que tudo indica, ainda não terminou. Logo no começo do vídeo Limério fala de sua visão da fábrica, que não é muito diferente da que eu tinha, e mesmo Roberval. A visão daquela grandiosidade abandonada, fantasmagórica, carregando a si mesma como fardo. Recife tem vastas inspirações sobrenaturais e a Tacaruna, ainda hoje, parece-me mesmo uma insólita assombração, a vigiar os caminhos. Naquela noite, eu e Roberval sentíamos seu olhar pesado às nossas costas.

Mas o que esse doc tem de muito bom é que, pra explicar o espanto da fábrica, Limério evoca os versos do poeta pernambucano, nascido em Limoeiro e que fez do Recife seu lugar de vida e verso, Austro-Costa:

O bond parou
Ergui os olhos de meu De Profundis
E surprehndi a treva afflicta
na Noite — irmã da alma de Wilde,
Afflicta, afflicta…

O óleo negro da Noite escorria por tudo.

Porém , os maroins têm lanternas na insídis…
(Os microscópicos anthropóphagos do Mangue!)

De prompto, o assalto.
Mas…
(Oh! A ultriz delícia
de esmagar, a sorrir, com um tabefe de estalo
a perfídia de um átomo de lama!…)

Segue o Bond, de-novo,
Agora, ao longe, a Fábrica
é bem um negro, immenso transatlântico
encalhado no mangue.

Quem me lê com alguma frequência ou me conhece, sabe do meu interesse, amador, diga-se, pela poesia pernambucana, sobretudo a quem Recife como fonte de inspiração. Então, descobrir um novo poeta, que eu simplesmente ignorava, é de uma imensa alegria. Ainda mais com tais versos. Vi a mim e a Roberval nesse poema, nesse bonde, a esmagar maroins contra o corpo, aos tabefes, e a mirar com respeito a Tacaruna. Que riqueza de imagem, um poema que é uma história inteira, um filme quase. Fica aqui a dica, Kleber Mendonça filho!

Assisti ao ótimo documentário e corri às pesquisas, agora em busca de Austro-Costa. Pouca coisa disponível, pouquíssimos poemas reproduzidos em parcos blogs. No Suplemento Pernambuco um delicado e curioso perfil nos oferece uma visão rápida mas bem apurada da passagem do poeta entre nós. Morreu jovem, o poeta, no dia 29 de outubro de 1953. Tinha 54 anos e se foi num acidente de ônibus, um dos primeiros a acontecer na cidade. Estava de pé no coletivo, a ler, e ao súbito impacto caiu e bateu com a cabeça. Lembrei imediatamente de Carlos Pena Filho, outro poeta do Recife que morreu, precocemente, num acidente envolvendo um ônibus.

“Quanto a mim, se não morrer, / vou entrar para a Academia / e isso é pior do que morrer!”

Mais um poeta sobre quem pouco se fala, pouco se lembra. Me vi andando pelo Recife, ignorante de Austro e seus versos, seu olhar sobre o mesmo Capibaribe que olhei tantas vezes ao longo da vida. Um outro Capibaribe que não o de João Cabral, que tanto pontuou meu convívio com o rio.

Capibaribe, meu rio,
espelho do meu sonhar
quero fazer-te o elogio,
mas penso: Se te elogio,
é a mim que estou a elogiar…

Capibaribe, meu rio,
espelho do meu sonhar…

Foi nos arquivos digitais da Biblioteca Nacional, pesquisando as edições das décadas de 1940 e 1950, que acabei por conviver com Austro-Costa. Poemas, encontros, pequenas notas, sua correspondência na posta restante do Diário, os posicionamentos políticos, o olhar sobre o cotidiano da cidade. Andei com Austro por um Recife imaginário, muito anterior a mim, mas ainda assim em mim, de alguma forma. Talvez pelo Recife ter sido sempre velho, mesmo quando eu andava pelas suas ruas, como se tivesse também quase 500 anos. Tudo que cresce de uma cidade, cresce dentro da gente também. Sua histórias, suas vielas, seus lampiões de gás, tudo vem dentro da gente. Veio dentro de mim Austro-Costa, sem saber, nem eu e nem ele. Poetas parecem sempre ser uma resposta ao que ansiávamos. Encontrar a obra de Austro-Costa e sua presença é um reencontro, uma espécie de “Gente! Claro!”. Esteve sempre ali, latente. E foi no espanto do reencontro que emergi dos arquivos da Biblioteca Nacional, agora em busca de um livro reunindo seus poemas. Uma pesquisa, agora na Estante Virtual, levou-me a alguns poucos e caros exemplares de época. Mas para minha grata surpresa, não é que a CEPE tem um volume que traz seus dois livros publicados e uma seleção de sonetos satíricos por módicos R$15?!

Enquanto escrevo aguardo ansioso a chegada da minha encomenda, para folhear suas páginas e conversar com esse poeta, verso a verso. Perguntar a ele se naquela noite, ao parar o bonde, ele não teria visto dois jovens perdidos, a esperar sabe-se lá o que, enquanto os maroins esvoaçavam, esses anthropóphagos do Mangue! Se ele viu, refletido nos olhos daqueles dois, o impossível Recife do futuro, os carros riscando a noite do Complexo de Salgadinho, a Tacaruna abandonada, ainda ancorada na escuridão de onde já não é mais mangue.

Leia também:
Austro-Costa, um Poeta do Recife – Texto de Paulo Gustavo (Revista Será?)
Pesquisa escolar FUNDAJ