Uma cidade assombrada

Texto de Toinho Castro


Para Aderaldo Luciano

Pense numa cidade assombrada! Recife é assim, cheia de almas penando por aí. Casas assombradas não faltam… sobrados velhos abandonados. Abandonados de gentes, mas finamente habitados pela mais alta linhagem de fantasmas nordestinos. Noite na rua Velha, extensão da ponte Velha, que leva até o Largo de Santa Cruz, onde tem a Igreja. Já passou por ali depois da meia-noite? Não basta, pois ser noite, tem que ser depois da meia-noite, quando vira o turno e os fantasmas são autorizados a vagar, arrastando suas correntes, suas lamúrias e seus passados. Passar pela rua velha quando começa esse lamento gótico-assombratício não é pra gente frouxa.

O Recife inteiro é essa coisa noturna, cada ponte é um ermo, passando por cima do Capibaribe escuro, moroso. Muitas vezes me debrucei no guarda-corpo da ponte Buarque de Macedo e pensei em Augusto dos Anjos.

Cismas do destino – Augusto do Anjos | Eu e outros poemas

Com o sol brilhando à pino esses pensamentos ainda assuntam. A casa do Agra, a funerária que se estabeleceu na cidade em 1850 e por gerações foi sinônimo de morte e cemitério e desse medo interior, profundo, que Augusto dos Anjos mirava com sua poesia e sua vida. Quando a noite cai sobre a cidade, sobre as pontes… eu falei da noite cair? Perdão, eu quis dizer avançar, quando a noite avança sobre a cidade. Lá se vai o sol, lá por trás dos Guararapes, a escurecência vai se espalhando pelos becos, pelos subúrbios, até chegar ao centro e inundar a rua Velha, depois de cobrir quase tudo. O Recife Velho já está tomado, Santo Antônio também. A Ilha do Leite silenciosa e vivalma nas ruas. Por quantas vezes atravessamos a cidade, de um bar para uma festa, de vidros fechados no carro de um amigo, sabendo que do lado de fora erravam os vagantes.

As histórias são muitas. Gilberto Freyre compilou num livro, Assombrações do Recife Velho, casos e mais casos de aparições lá nos areais dos Aflitos, sobrados assombrados no Pátio do Terço, na rua Imperial, mesmo o Teatro Santa Isabel, ali de costas para o rio, tem suas histórias soturnas. Mas a rua Velha… A rua Velha é de arrepiar, com suas portas e janelas fechadas, seus muitas de suas casas convertidas em comércio e as almas arrastando as caixas de água sanitária, sem compreender que o mundo mudou. Certa vez passei por lá no meio de uma madrugada, eu e esse meu amigo com quem havia tomado umas cervejas, ao som de algum teclado casio um dos pega-bebo que ainda resistiam. Entre a conversa e a cachacinha que carregávamos pra esquentar a consciência, fomos bater naquele vão entre mundos. Lá adiante, na linha reta da rua, pensamos ver um vulto e nos encolhemos. Um arrepio subiu do asfalto, atravessou nossos corpos e saiu pela cabeça em direção das nuvens, carregado de elétrons negativados pela aparição, Demos um gole na caninha, como se nos benzêssemos e passamos a avançar lentamente. E de repente estava posta ali a figura, entre nós e o Largo da Santa Cruz.

— Boa noite! — Sinalizei.
— Boa noite… — Respondeu com uma voz dos além. Os arrepios descarregavam sua eletricidade estática à nossa volta. — Isso é hora de tá na rua?! 
— Estamos de passagem somente!
— Pois vão ter que passar por mim. — Falou como num sussurro, que ainda hoje escuto nas noites mal dormidas.
— É alma ou gente que tá aí?! — Ousei, por causa da bebida, perguntar.
— É Alma, seu cabra safado! É Alma!

Cresceu o coro dos Anjos
E o coro de Satanás.*

A partir daí já não sei mais. Corremos eu e meu amigo, deixando a Alma e a cachaça pra trás! O que foi feito dele não me pergunte, porque corri cego dos olhos! Quando dei por mim estava esbaforido na avenida Guararapes, onde o Recife vai marchando**! Recuperado da bebedeira, senti que soprava uma aragem fria. Recuperei o fôlego e olhei pro céu, só pra ver que uma nesga já se acinzentava pro azulado da madrugada se despindo em manhã. Se eu estivesse em Boa Viagem veria o cocuruto do sol se apresentando para o trabalho de espantar as fantasmagorias de volta para as tumbas, paredes, sótãos e cristaleiras. Ouvia-se ou uivos distantes se perdendo em ecos e as gargalhadas dos barões ensanguentados. Dali caminhei até a Dantas Barreto, pra pegar meu ônibus de volta para a Imbiribeira, para casa…

A casa da Imbiribeira – Gilberto Freyre, em Assombrações do Recife Velho

*Versos do poema A barca do céu, de Ariano Suassuna
**De um verso do poema Chopp, de Carlos Pena Filho