Texto de Toinho Castro
Marina Lima lançou disco novo, um EP com quatro faixas. Chama-se Motim, nome apropriado aos nossos dias. Tem também um songbook, Marina lima – Música e Letra, reunindo cifras e letras de todos os álbuns lançados desde o primeiro, Simples como fogo, de 1979, e que está disponível para download gratuito no site da artista! Essa é a notícia boa, num país carente de boas notícias. Bem, isso faz alguns dias, então, sei lá, talvez já seja notícia velha, nesse corre-corre que a gente vive. Curiosamente um corre-corre algo paralisado, porque a pandemia é como uma gravidade de Júpiter sobre a gente.
E essas quatro músicas da Marina, são um alento nas cápsulas em que estamos enfiados, ou confinados, orbitando um mundo que não é mais o mesmo. São quatro canções precisas, certeiras, que mostram, de um jeito simples e claro, o quanto Marina é necessária e atual, e o quanto ela carrega, com fluidez e leveza, o legado desses 21 discos que ela fez acontecer no Brasil. Sob esse aspecto, é emocionante escutar Motim, sobretudo quando a voz dela emerge em Pelos apogeus, que abre o lançamento. Uma declaração de amor, declaração de vida vivida. Vívida e apaixonada, pelas amizades, pelos amores amados, pela cidade.
No começo era a praia
O mar com suas ondas e cor
Meus amados
Obrigada
Pelos Apogeus
Que disco lindo, gente, percorrido por um arrepio em cada canção. Fico querendo ele em vinil, pra ver ele rodando na vitrola enquanto toca Motim, essa música de amor, que dá título ao disco, que declara essa insistência no amor, esse quase me abri com você. Quanta delicadeza nesse vacilo de coração, num quis beijar, num quis fluir. Eu falei arrepio? Sentiu? Isso é Marina presente. Marina cantando. A música linda é parceria com Alvim L e com Giovanni Bizzotto.
Kilimajaro, parceria também com Alvim L (participação especialíssima) e Alex Fonseca, que produz o disco com Marina, é quase uma intensidade de Motim.
Correr o risco a 100 por hora
Pra escapar desse eterno agora
Um Kilimajaro no olhar, a que se ascender, escalar, na coragem íntima, a presença do outro. Tem algo de expectativa na música. Escuto enquanto a noite cai no Rio de Janeiro… tem algo aqui de cair da noite. Descanse em caos. As batidas, o eletrônico que Marina nos ensinou a amar, totalmente dela, inconfundível. Como alguém tem uma perenidade na transformação. O novo que ecoa o familiar.
O disco, insisto em chamar de disco, termina com Nóis. Música desse país pandêmico, com participação do mestre Mano Brown. Soturna, mas sem perder o pé do chão. Essa pandemia do vírus, mas também do ódio e do medo.
A onda de horror chegou por aqui
De todos os lados e sem prevenir
É prece, é desabafo (prece boa é desabafo!), e fé no que ainda somos ou nos resta, como potência, querendo acertar, resistir, passar por isso tudo. Música poderosa, como barreira contra a violência que se quer impor.
Rezar, pedir, torcer pra tudo passar
Pra que a gente possa tão logo beijar
E abraçar
O povo mais sonhador que há
Que disco de amor… Quatro músicas. Você acha pouco? Não, não é pouco! É muito, é demais! É Marina Lima completa, inteira, consistente, ciente e sábia de sim. A noite já caiu na Guanabara… A noite caiu com Motim no streaming. Ao fim, pulou para outra música de um outro, antigo, disco da Marina… e foi tão natural, como se a mesma água do mar, do Leblon, talvez, me banhasse. Solidão com vista pro mar. Motim é um encontro com essa artista imensa, que gravou e lançou 21 discos! Uma obra e tanto, de uma mulher e tanto.
Motim está disponível nas plataformas de streaming!
Tem esse acontecimento quase anedótico, que aconteceu comigo, muitos anos atrás, lá nos anos 1980. Eu morava no Recife e era aquele sujeito que gostava de rock estrangeiro e não escutava música brasileira. Entrei numa loja de discos que tinha no centro da cidade, e perguntei por um disco chamado Fugazi, de uma banda cafoninha de rock progressivo, chamada Marillion. O balconista que me atendeu disse que sim, foi ali numa prateleira e voltou com outro disco… Fullgás, de Marina.
Achei graça naquilo e nem quis desmanchar o mal entendido. Perguntei o preço, agradeci e fui embora. Perdi ali a oportunidade de conhecer Marina, e amar.
Uma vez vi esse filme, Grand Canyon – A ansiedade de uma geração (péssimo subtítulo em português!). Nele, o personagem de Kevin Kline está prestes a atravessar uma rua em Los Angeles, e ser atropelado, quando uma mão, vinda do nada, o segura pelo ombro e impede que a tragédia aconteça. Atordoado, ele se recompõe e vê uma mulher se afastando dele, e ele percebe que foi ela que o salvou. Agradece sem graça e ela sorri pra ele, sumindo na multidão. Isso o abala e ele enxerga aquela mulher, que usava um boné do seu time, como uma espécie de anjo, que entrou ali, para mudar sua história.
Penso naquele balconista e penso nele como esse anjo, que ia me tirar daquela vida besta de rapaz-roqueiro-radical, e me introduzir a uma vida nova, mais aberta e brilhante e divertida, e bem mais perto do que eu era… só que eu ainda não era. Eu ainda faltava e levou tempo.
Em 1993 visitei o Rio de Janeiro pela primeira vez. Eu já conhecia Marina, claro, de ouvir no rádio, na TV, sei lá… Estava ali na praia, bem na altura do Jardim de Alah, olhando as águas do mar avançando pelo canal. A tarde ia virando noite e de repente olhei pra minha direita e vi, testemunhei, o letreiro do Hotel Marina acendendo. Devia ser outono, tinha aquela bruma vinda do mar, as luzes dos postes acendendo também, o barulho das ondas e dos carros. Nossa, eu entendi. Juro que lembrei do balconista da loja de discos e do Fullgás que eu devia ter levado ali mesmo para casa.
O Rio de Janeiro era onde eu mais queria estar e estava naquele fim de tarde integralmente. Era uma epifania. Era tudo novo, eu era novo. Era o sol se pondo num lugar que eu nem entedia, uma malandragem geográfica. Marina, pra mim, era como uma Rita Lee pro Caetano. Era a mais completa tradução daquele Rio de Janeiro em que eu chagava pela primeira vez; uma cidade que prometia numa mais deixar, coisa que só aconteceria num certo fevereiro de 1997, quando vim pra ficar.
Comprei meu primeiro disco da Marina, e não, não foi Fullgás. Foi O chamado, um disco lindo, emocionante. Pode ter sido naquele 1993 mesmo ou no ano seguinte. Ouvir Marina era estar no Rio de Janeiro, era contar as horas, os dias, meses para retornar e ver o Marina acender, e o farol da ilha. E tantas coisas que o Rio estava por me revelar, sobre ele e sobre mim mesmo. Um belo registro da maturidade de uma artista. Tocou-me particularmente, e ainda hoje mexe comigo, a música Eu vi o rei, que me lembra tanto, tanto meu pai. É como se eu tivesse feito essa música pra ele.
Naquele dia, em que vi o Hotel Marina acender seu letreiro pela primeira vez, peguei a câmera e fiz a foto que acompanha esse texto. É raro, ainda mais para aqueles tempos, a gente ter um registro de um momento tão preciso de transformação, de iluminação, quando a gente se vê como alguém novo, que está chegando em si.
Hoje passei o dia ouvindo Marina. O disco novo, outros discos… o Fullgás, O chamado, Registros a meia-voz (que tem uma versão alucinante de Para um amor no Recife, e essa joia chamada O solo da paixão), aquele de 1991, que tem Grávida… Passei o dia ouvindo cada disco de Marina, e que dia bom. Que dia rico! Nem parece que o mundo lá fora… Nem parece que o Brasil… Escutar Marina é um ato de resistência.
Nossa, caí no seu texto de forma aleatória e me emocionei. Pq me vi muito nele, essa relação temporal, elíptica, cíclica, de uma vida inteira tendo Marina aqui do lado. Muito mais do que música, é sobre um modo de ver a vida, de encarar as coisas.
Olá, Gabriel! Que coisa boa então você ter esbarrado com esse texto! Fico muito feliz. Marina tem uma dimensão incrível. Que artista! E é isso… conectada à minha vida também. Esse episódio que descrevi foi um marco de libertação, de um jeito de ouvir música, sabe. Um jeito novo de sentir alegria.
Obrigado pelo seu comentário.