“Tenho reparado nos ipês pela cidade” — Poemas de Micaela Tavares

Poemas de Micaela Tavares

Ah, nos cativou de pronto a poesia de Micaela Tavares, que nos chegou de surpresa, na nossa caixa mágica de correio eletrônico, com seus ipês, com seus olhares de amor, com sua poesia inscrita nas paredes do ap, na pele, na camiseta, no riso sob o sol, nas ruas da cidade.

Seja bem-vinda à Kuruma’tá, Micaela!


Romance Sapatão

Quando me apaixono
busco por apartamentos em locação
decorados de varandas
plantas que sobreviveriam no inverno
ou no verão
uma vida juntas, um espaço nosso
quem sabe um toca-discos
gato, cachorro, espada de São Jorge
ou a samambaia
pendurada na beira da escada
do lado de fora
recaindo sobre a varanda
do ap
que visitei no Instagram
Quando me apaixono
penso na vida a duas
que poderíamos ter
faria batata com curry
suquinho de caju pra você
quem sabe rir um pouco mais da tv
antes de escolher
o filme da noite – série não porque podemos dormir e perder
a parte boa
Quando me apaixono
traço os planos de hoje & de amanhã
busco a música que te ouvi cantarolar
na noite passada
e me apeteço na lembrança
dos teus lábios dançando
antes de urgir o grito de boa noite
Quando me apaixono
lembro da hora e afogo o tempo
dito que as regras do que passa
nada se vai
me vejo de mãos dadas
quase caladas por tanta coisa a dizer
Quando me apaixono
fecho os olhos para lembrar
esqueço de esquecer
Vai que dessa vez eu me apaixono
e concretizo esse querer
comprando aquele ap
montando a varanda
trazendo o gato, cachorro, a samambaia
te chamando para morar comigo
esse embolado todo
eu&você.

Talvez ela tenha me fisgado

ontem
eu falava bem mais das meninas
as quais não hei de negar
que adoro
quando tão desengonçadas
armam planos
criam fábulas
para me ver
hoje
eu falo bem mais da menina
a qual não hei de negar
que adoro
quando tão arrepiada
sussurra baixo um segredo
que me faz gaguejar
e me render
qual era o assunto?


Alguém me ensina a amar só quem me ama, por favor

eu finjo não ver
mas estou quase sempre vendo

a rua lá embaixo
a samambaia crescendo
teus olhos – um tiro

estou quase sempre vendo
e quando tu não vens
não tem graça
fico tonta
perco a piada
enquanto tu não vens
mas quando te vejo entrar
te vejo chegar
eu finjo não ver
mas estou quase sempre vendo

I’m bad for you but

I’m bad
tentei te escrever canções
perdi o trecho que dizia
que me acompanharia no
teu ukulele azul
eu pensava em notícias para dar:
o cinema em que íamos fechou
e te vejo tímida ao beijar-me
sob a areia
talvez eles vejam
e não me importo
que vejam
porém, darling, tu te importas
mas tudo bem!
às vezes jogo pedras
na água e faço-as quicar
consegue ver? Talvez não viste pois atendia o celular
darling, I’m bad for you but
estou disposta a esperar
as cinco horas de trânsito sem sinal
me fazem enlouquecer sem você
por isso
escrevo poemas

Tenho reparado nos ipês pela cidade

o meu corpo
restringe
que tua alma
me queira

pouco me importa
o corpo dos
outros pouco me
interessam fico
de ver se vens
quando vens
vou
abaixo a cabeça
enrubesço
mas volto o olhar
ao teu – de vez em sempre

procuro pelo melô
que dançamos na
mesma intensidade
em que reparo os
ipês floridos
pela cidade: como se
fosse a última coisa a se
fazer antes de
morrer.

Me incomoda

me incomoda que
aos meus pais
não incomode
o racismo
o patriarcado
a voz do presidente
o cerco no planalto
as laranjas no mercado
a cor da nova era
a política severa
o rompimento do silêncio
a minha luta
aos meus pais
interessa
onde vou que horas volto
não lute contra forças maiores
estude mas não se revolte
cresça mas não apareça
olhe mas não use a voz

logo eles que
em 1964 viram
o Brasil ruir em sangue
logo eles que
são da era do fascismo registrado
logo eles que
não avisavam a hora de voltar pra casa

Não é o amor que falta

Afinal o que importa não é a literatura
ou o riso da menina quase bonita que ao teu lado
sobressalta cinco rimas sem coração
alguns dias de angústia
seis bocas para consolar

É preciso o amor de repente fazer graça
ver aeroplanos na linha de pouso
as luzes de uma cidade que não conhece
desculpe sou jovem não tenho tantos planos

Hoje é o dia de todos os demônios
quase esqueço minha dor
foco na dor dos outros

No poema da Wislawa foi muito bem-dito:
Ninguém na família jamais morreu de amor.


Micaela Tavares (21 anos): aquariana com ascendente em peixes – por isso escrevo poemas. estudante de Direito na UEMA nas horas restantes. leitora apaixonada dos poetas marginais e contemporâneos. Possui poemas publicados nas revistas Variações e Quatetê. Em breve autora publicada do 1º livro cujo nome será Tenho reparado nos ipês pela cidade pela Editora Folheando. 


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