A poesia de Anamélia Mello Revista Kuruma'tá, 12 de maio de 20213 de fevereiro de 2022 Conheci Anamélia nos primeiros dias de Universidade, lá no Recife. Era 1987 e éramos da mesma turma de Comunicação, no Centro de Artes e Comunicação da UFPE. Lembro que certa tarde, quando cruzamos nossos caminhos no hall de entrada do CAC e vi que ela trazia na blusa um botton com um verso de Caetano Veloso: Que a acrítica não toque na poesia, daquela música sensacional e muito pouco comentada, Ele me deu um beijo na boca. Esse verso nos aproximou. A poesia nos aproximou e compartilhamos aqueles dias de universidade, dias dourados, levados por um aguçado senso poético da vida. Naqueles tempos já experimentávamos versos e rimas, e é uma alegria ver que Anamélia se consolidou como poeta, desenvolveu um trabalho que hoje compartilhamos com você que generosamente nos segue e nos lê. Agora vamos a uma pequena amostra, cinco poemas, do talento de Anamélia Mello, que ainda traz a poesia na blusa, na pele, no coração. —Toinho Castro, editor da Kuruma’tá Poesias de Anamélia Mello O ARBÍTRIO DAS ÁGUAS Acordo.A boca enorme da águaaplaca tudo.Logo nada restaráde nossos sonhos parcos.Lavados os carroso caos se agiganta.As pessoas recolhem tudo que podemmas não sabem o que fazer consigo mesmas. Levanto.A morte jaz sobre as pedras das casasem frente ao lixo que bóiajunto com os escombros de um diapassado em alerta máximo.Dor extremaque tudo leva em seu regaço:móvel, folha, criança e o descompassodo horizonte brancomonocromático.Não há tempo fútil possível.Todos os assuntos são graves. Acordo… levanto…Mas quisera jamais ter abandonadoo estado de sonho… CANSAÇO Dia de trabalho árduo, muitos cálculosSobre a divisão do tempo, a organização do horárioO oposto dos anos sedentáriosEm que são longas as horasDedicadas ao ócio ou jogadas fora Dia de duros esforços, muito fôlegoPara continuar de arrojo em arrojoEm que é impossível pararInútil fugir da raiaEm que o sensato é andarPra frente e esquecer a mágoa Dia de suor luzente na fronteE dor aguda nos músculosDia de ruga na testa em busca de DeusO oposto do dia de festaO oposto do dia do adeusHá que se traçar metas, seguir cronogramaHá que calçar os sapatos e esquecer a cama Há que esquecer o prazer, o jogo e o flerteUrge checar o cheque e o balancete!Ousar cair na gandaia, entornar o copo?Não hoje, agora não dá, é inviávelFavor esquecer o provávelFaça-o inadiável! Dia de árduo decoro, duros esquemasSobretudo dia de bater as pernasEnfrentar o ônibus e as filasApressar o passo rumo ao objetivoCalcular o lucro, descontar os ganhosApertar o cinto, esquecer os sonhos… DUO DE SOMBRAS A claridade oprimia a alma com um riacho de gotas de suora realidade era miragem, que o trôpego andar percorrianada respirava, mas a luta pelo arera o sinal de que seria encontradoo ouro das manhãs e tardes O abraço era sôfrego, seus raios apertavam a Terratudo em brasa secava como se a morte fosse o clima secoo vento de abanos queimava a peleouviam-se cantos de pássaros, mas os olhos mal enxergavampoderia ser qualquer coisa aquela imagem ilusória O que é duro quebra, e o gelo não se derreteforma crostas e reluz mais que o mundoreflete tudo a neve, até o sol, reflete estrelasé ameaçada por nuvens, quem quer ser água vivevaza e congela por inteira sem dar tréguainsensível brisa gélida Água em neve fôfa toma a forma dos bancos, das escadas, das curvas dos carrospesa nos galhos o gelo, enfeita os riosamarela ao pôr-do-sol, escurece no ônix da noitefaz brilhar toda superfíciedesperta nossa atenção, aguça, vivificaenvolve, mas impele adianteem seu congelante desafio E vida brota no inverno, no verão, dentro e fora de mim, na coleção infinita da eternidade… SEM DÚVIDAS NEM CERTEZAS Eu te vi luzir a chama em bares de esquinasafogando o sábado em espumas branco-nuvem e douradas.Eu te vi espargido na grama em frente ao edifíciobuscando estrelas na abóbada celeste. Ouvi teu canto marinho e o som do teu violinoincendiando horas gélidas na passagem do tempo.Senti o pulsar do músculo íngreme do teu peitoque batizava as emoções em hierarquias. De ti nunca previ um só movimento de vida,a vida que em ti inflava velas para a grande travessiaem redemoinhos, pensamentos, sentimentos e crençassempre questionadores e prontos para o aprendizado. Quando eras tomado pela Musa, veio de amor que te pulsava dentrocompunhas elegias as mais atrevidas e decantavas a sorte e o tormentoQuando ias embora, a ponte se erguia para nadares outras correntezase eu me descobria nem fora nem dentro, num agora sem temposem dúvidas e sem certezas. É NOITE É de noite que brilhaa estação de nenúfareso gelo dos teus olhosa me ver passaro escuro de chumbo e de pólvora. É de noite que colo meu olhar ao teu olhare inauguro a mútuatransparência de almas. É de noite que venho cobrara força das pelejas do diaa acidez do teu coraçãonossa rudeza característica. É noite quandonossos corpos se enlaçame bailamos em picos sagradossem nada distinguir ao nosso redor. É a estação das pedras cortanteso vício das madressilvasos campos bordados de luzmais branda que o tempoo gesto simbióticoa simbologia da cópula. É noite quando me deitoem cima de séculos sombriosapago a lamparina da razãoe me entrego ao delírio. São feixes de momentos aprazíveisem que me pego absortono ritmo alucinado do teu gôzono pouso firme que te doei. É noite quando sigo fielmentemeu destino escolhidodeixando para trás, cativomeu músculo esquerdoabraçando teu espíritofeito a luz de um espelho. Anamélia Cabral de Vasconcellos de Azevedo Mello, psicóloga pós-graduada do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco desde 2014. Atende como psicóloga clínica, terapeuta ayurvédica e terapeuta floral em consultório próprio e na modalidade online. É membro da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil e da União Brasileira de Escritores Seção Pernambuco. Membro do grupo Teia Literária há 7 anos, com quem co-participou de 4 livros de poesia e contos: “Coletânea Pegadas da Escrita”, “Mulheres feitas de tempo” e “Nós dos eus” e “Ecos da Resistência. Participou também da coletânea “Carrero com 70”, em homenagem a Raimundo Carrero. Escreveu um livro de poesia em português e outro em inglês, ainda não publicados. Vem recitando seus poemas em locais culturais em Londres, Recife e em lives no Youtube. Atualmente, está gestando um novo livro de poemas e um de contos. Instagram: @anameliamello. A Leia Mulheres