A colonização

Texto de Toinho Castro


I

Depois de meses de obras, não sem alguma polêmica, o Matadouro Público abandonado é agora, oficialmente, um centro cultural que transforma o nosso bairro num pólo gerador de arte, cultura e entretenimento para a cidade. O que ninguém sabe, exceto eu e um restrito grupo de amigos, é da verdadeira vontade por trás dessa singela inauguração com direito, diga-se, a autoridades e jornalistas.

Sabemos, há muito, que eles estão entre nós mas não fazíamos ideia das suas estratégias de colonização. Agora tudo está claro e a verdade é terrível. Estamos sendo colonizados por uma raça alienígena construtora de centros culturais.

O mecanismo e as consequências desse obscuro movimento são mistério. e nossos líderes políticos já são joguetes na mãos dos alienígenas de outro planeta, cedendo cada vez mais espaços públicos para seus propósitos de conquista. Secretamente avançam na hierarquia das instituições e têm acesso a números e dados que completam suas agudas e seculares observações do nosso planeta. Estão nas bibliotecas e escolas, muitos dirigem nossos ônibus e assim descobriram que a arte é o caminho mais rápido para nos conquistar. Vemos então as filas aos domingos para ver exposições de grandes pintores e as crianças inocentes participando das oficinas de argila e socialização.

Por trás de tudo estão os raios selenitas e marcianos. Pinturas e esculturas emitindo sinais vertiginosos para cada mente. Logo, a cada novo centro e a cada nova exposição, tudo estará controlado. Um mundo de apreciadores de arte e cultura, cultivado por seres estranhos. Um dia eles farão a colheita e todos os centros culturais entrarão em sintonia, monitorando vastas regiões do planeta. Seremos presas fáceis.

Estamos deixando o bairro ainda hoje, no meio da noite para não levantar suspeitas. O antigo Matadouro Público fica a duas quadras daqui. Não passar por ele significa dar uma grande volta e não cruzar a ponte, que abrevia os caminhos. Soube que ontem já ostentava grandes cartazes anunciando uma monumental exposição de Salvador Dali e a performance de um artista performático local. Vamos tomar o caminho mais longo e evitar que as crianças sejam monitoradas pelos raios selenitas, pelos raios marcianos. Artista performático local, era só o que faltava. Estão indo longe demais.

II

Acabei de voltar do parque e está cheio de esculturas. A imprensa está lá, como sempre, e há guardas para impedir que algum vândalo ou louco as danifique. Os loucos sabem tão bem quanto nós o que está se passando. Tentei estudar o posicionamento das peças para entender sua configuração e que tipo de raios estão emitindo, mas não quis me expor demais às radiações artísticas e voltei para a hospedaria. Havia comentários de que, ao cair da noite, haveria um concerto de música barroca, e pessoas embevecidas já circulavam por lá com cara de que gostavam de música barroca.

Vítimas, vítimas inocentes.

Acreditamos que eles têm pressa, que eles querem mais e não vão parar. Os centros culturais se multiplicam e quase já não há para onde fugir. E também não queremos deixar a cidade. Devemos ficar aqui e procurar meios para neutralizar os efeitos dos raios. Devemos interceptar amigos e conhecidos a caminho de uma mostra de filmes e desviá-lo para uma pescaria ou uma cerveja numa esquina qualquer. Vamos agindo assim, sabemos que cedo ou tarde, no fim de semana seguinte, talvez, ele vai acabar indo ver a tal mostra ou a exposição itinerante do Dalí. Porém, de alguma maneira, atrasamos o golpe final por mais uns dias, atrapalhamos o plano perfeito que eles elaboraram.

Nosso objetivo não é mais ganhar essa guerra perdida, mas morrer em plena luta. Ou morrer como agentes secretos, incógnitos e heroicos. E inúteis.

Impressionante a quantidade de coisas que já deixamos para trás, fugindo. Isso deve ter algum valor no combate, deve criar algum efeito nas máquinas que certamente funcionam nos porões de cada centro cultural que eles conseguem inaugurar. Algo naqueles chips alienígenas deve falhar porque insistimos, porque lutamos até o fim das nossas alternativas.

O parque agora é um local proibido. Não podemos mais cortar caminho por ele para ir ao supermercado e assim os nossos caminhos se tornam mais longos a cada dia. Logo estaremos ilhados. Comprei protetores auriculares para barrar as ondas magnéticas do concerto de música barroca. Amanhã, porém, não poderemos evitar os comentários da vizinhança, do quanto tudo foi belo e educativo e da importância da música barroca para as novas gerações.

Eles estão por perto, eu sei, anotando tudo. Nada escapa às suas observações. Isso os ajuda a programar os próximo eventos e a investir em certos artistas ou mesmo movimentos. Seguimos tentando atrapalhar, com opiniões dissonantes, contraditórias e arrumando discussões em mesa de bar por afirmar que lugar de música barroca é no século XVII. Acabamos criando desavenças com os vizinhos; e não frequentar centros culturais é péssimo para nossa imagem. Mas, como eu já disse, não estamos mais nem aí. Perdemos a guerra; estamos fugindo e deixando campos minados para trás.