Daniel — Um poema de Milena Martins Moura Revista Kuruma'tá, 2 de julho de 20212 de julho de 2021 Daniel como herança recebi olhos com defeitode um verde-escuro encardidoamarelado no meio recebi também um álbum de fotografiascom rostos de mulheres sem nomeque reconheço ao espelho cada qual com sua nódoa de mofo a lamber herdei dentes grandes e um candelabro de louçae um jogo de prantos que foi da minha avó o menino jesus de praga ficou com minha mãe e a madama de porcelanapasseando o cachorro de porcelanana vitrola em 89foi dada a uma madamanão dada a passeios nem cães herdei pintas marronse predisposição a câncer de pelebulhas cardíacas desiguaise baixa estatura e aquela pasta de couro que tinha cheiro de gaveta fechadaonde ficavam os poemas dele que eram só meus herdei também uma orelha mais alta que a outrapelo que meus óculos andam sempre tortos e a vontade de escrever isso em versos o azul perdido dos olhos do mortodomina soberano as quinas dos móveise os soslaios de desprezodos parentes com dinheiro está nos tios que exibem orgulhososas conquistas aumentadasdos filhos que criaram o rosto do morto está no relógio de ourodado ao meu paique entrou na família por casamento e nos cantos caídos dos lábios da minha mãeque entrou na famíliaporque nascer é sempre à força no meu narizas sardas do morto se camuflamcomo palavra esquecida pouco antes de lembradadaquelas que é preciso estar buscando e sua vozque julguei imperecívelveio sumindo como se chorasse o morto tinha nome de anjo sussurrado em prece aflitae ignorada o silêncio onipresentedos deusespor quem ninguém maisquer morrer A Milena MartinsPoesia