Daniel — Um poema de Milena Martins Moura

Daniel

como herança recebi olhos com defeito
de um verde-escuro encardido
amarelado no meio

recebi também um álbum de fotografias
com rostos de mulheres sem nome
que reconheço ao espelho

cada qual com sua nódoa de mofo a lamber

herdei dentes grandes e um candelabro de louça
e um jogo de prantos que foi da minha avó

o menino jesus de praga ficou com minha mãe

e a madama de porcelana
passeando o cachorro de porcelana
na vitrola em 89
foi dada a uma madama
não dada a passeios nem cães

herdei pintas marrons
e predisposição a câncer de pele
bulhas cardíacas desiguais
e baixa estatura

e aquela pasta de couro que tinha cheiro de gaveta fechada
onde ficavam os poemas dele que eram só meus

herdei também uma orelha mais alta que a outra
pelo que meus óculos andam sempre tortos

e a vontade de escrever isso em versos

o azul perdido dos olhos do morto
domina soberano as quinas dos móveis
e os soslaios de desprezo
dos parentes com dinheiro

está nos tios que exibem orgulhosos
as conquistas aumentadas
dos filhos que criaram

o rosto do morto está no relógio de ouro
dado ao meu pai
que entrou na família por casamento

e nos cantos caídos dos lábios da minha mãe
que entrou na família
porque nascer é sempre à força

no meu nariz
as sardas do morto se camuflam
como palavra esquecida pouco antes de lembrada
daquelas que é preciso estar buscando

e sua voz
que julguei imperecível
veio sumindo como se chorasse

o morto tinha nome de anjo sussurrado em prece aflita
e ignorada

o silêncio onipresente
dos deuses
por quem ninguém mais
quer morrer


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