O Yin e o Yang no xirê dos Orixás

Texto de Eduardo Macedo


“Será que a Teoria da evolução também se aplica ao restante do Universo? Será que os planetas que melhor se adaptaram ao ordenamento dos seus sóis são os que sobreviveram? Pode ser que sim. Isso me faz pensar que esta subserviência astrológica é justo o que permite a existência de um outro tipo de vida, outra energia, agora transgressora, que pulsa oculta, na antimatéria, no vazio do Cosmos e no branco de uma folha de papel, à sombra de letras sobrepostas. Se os átomos e moléculas que nos compõem, um dia foram poeira estelar, então também podemos pensar o contrário: um dia voltaremos a ser, quem sabe, uma pedra no solo de Marte ou algum dos anéis de Saturno. O desafio é esse. Descobrir que a nossa Shangrilá existe, e que nos será apresentada quando formos levados por entre entranhas desconhecidas de um buraco negro distante”.

Foto de Felix Mittermeier

Muito me impressiona – mas não surpreende – que culturas tão diversas e distintas quanto as da Civilização Chinesa e da Civilização Africana Iorubá tenham feito, milhares de anos antes de Cristo, uma leitura cosmogônica parecida e tenham transformado o produto dessas observações e análises em idéias aplicáveis ao cotidiano de suas sociedades. Em ambas está sempre presente a ideia de harmonia dinâmica e cíclica, que se equilibra através da espiral do tempo.

Antes da Era Colonial, os povos depois reunidos sob a denominação “iorubás” constituíam uma federação de cidades-estados tendo como centro IléIfé. O termo yorubá era usado apenas para denominar o povo de Oyó. A partir do século 19, missionários colonizadores passaram a incluir outros povos sob a mesma denominação: egbás, ijebus e ijexás, dentre outros (Nei Lopes. “Ifá Lucumí – o resgate da tradição”. Editora Pallas, 2019).

No culto às forças conhecidas como Orixás, o universo é vivenciado e compreendido como um processo dinâmico em que forças se atraem e se repelem, se equilibram e se desequilibram. Segundo essa cosmovisão, o equilíbrio não configura uma harmonia estática, mas uma situação de constante movimento – o que também ocorre, em dimensão sobrenatural, no universo das divindades (Nei Lopes. “Ifá Lucumí – o resgate da tradição”. Editora Pallas, 2019).

Xirê é uma palavra Yorubá que significa roda, ciranda ou dança para a evocação dos Orixás conforme cada nação. Como em tudo o mais no Candomblé, tem também os seus preceitos e existe não só uma ordem a se respeitar, como existem palavras e saudações específicas que devem ser ditas para que a convocação dos Orixás seja correta (Fernando Cardoso Rezende Alves. “Xirê: o ritual como performance entre a cultura e o corpo”. TCC (UFU), 2017).

A ordem de evocação das divindades me parece variar conforme varia a referência bibliográfica, o que talvez seja a expressão de possibilidades reais, conforme a Nação ou mesmo a Casa onde o ritual toma lugar. Não pertencendo a nenhuma religião de matriz africana e, dado o forte componente da tradição oral no meio e a justificada preocupação em não vulgarizar conhecimentos sagrados, peço desculpas antecipadas aos que detém de fato esse conhecimento, a quem manifesto o meu profundo respeito. Minha única intenção é conectar e transcender assuntos e áreas do conhecimento.

“…É importante ressaltar que ao longo do processo de sedimentação das religiões africanas no Brasil, alguns coletivos se propuseram a recuperar os cultos de suas nações especificas, porém ainda marcados pela fusão de práticas e cultos propiciados pela diáspora. Pois bem: há variadas nações como Ketu, Angola,Omolokô, Efon e Jêje, todas da antiga região do Benin (Fernando Cardoso Rezende Alves. “Xirê: o ritual como performance entre a cultura e o corpo”. TCC (UFU), 2017).

Vejamos então:

No xirê (ciranda) dos Orixás estão presentes quatro elementos básicos e suas dezesseis qualidades. Fogo, Terra, Água e Ar contém quatro Orixás em permanente comunhão. Do elemento Fogo temos Elegbara, Ogum, Oxumaré e Xangô. Em Elegbara temos a representação do fogo do centro da Terra, o núcleo de ferro e níquel fundidos e incandescentes em seu ponto mais elevado de temperatura. Após receber o movimento de Ogum, a força do caminho, este conteúdo pode ser visto quando das erupções dos vulcões. E daí se organiza em rios de larva que escorrem pelos declives montanhosos como Oxumaré. Posteriormente chega à cristalização das pedras vulcânicas em Xangô. Podemos entender que em Elegbara encontramos o início criador de nossa inventividade, nossa libido, para o surgimento do novo que vai ganhar possibilidades criativas a partir da movimentação feita em Ogum, podendo ser devidamente classificado e organizado em Oxumaré. E receber a arte final em Xangô.

Foto de Clive Kim
Foto de Arnie Watkins

No elemento Terra os quatro elementais são Obaluaiê, Oxóssi, Ossaim e Obá. Aquela pedra vulcânica passa por uma natural transformação até virar um chão empedrado e duro, a terra mais seca existente, símbolo de realidade crua e nua. Ali reside os poderes transmutatórios de Obaluaiê. Ao primeiro contato com a água vai possibilitando a existência de vida animal e vegetal no reino de Oxóssi. Com novos elementos a ecologia ganha diversidade e complexidade. Na preciosidade de plantas, ervas e flores quem manda é Ossaim. Onde a terra é mais molhada se situa Obá. A dura realidade da terra seca deve ser ultrapassada utilizando-se a razão para construir cidades e conhecimentos.

Chegando ao elemento água nos vemos frente às nossas emoções. Nessa dimensão encontram-se Nanã, Oxum, Iemanjá e Ewá. Após a infiltração da água na terra e da realização da fertilidade no estado de lama ela brota pura e límpida. Nanã trabalha nessas fontes e nascentes. Na medida em que escorre, primeiro de maneira doce e suave e depois mais fortemente pelos rios chegamos no campo de trabalho coordenado por Oxum. Os rios caminham para o mar, com toda sua enorme diversidade de vida, nos domínios de Iemanjá. Ao evaporar a água passa do estado líquido para o gasoso sob a égide de Ewá. Nossas emoções são nossas águas: se apresentam puras e límpidas quando nascem e depois correm pelos campos propiciando o surgimento de cidades, fazendo a junção de nossas realidades buscadoras, colocando nossa razão emparelhada ao afeto e assim trazendo nossas paixões e nosso desejo de nos misturar, de criar famílias. Razão e emoção vão nos ajudar a transcender valores na medida em que partimos para novas dimensões.

Foto de Nandhu Kumar
Foto de Daphne Zaras

O elemento “Ar” é quem rege o quarto estágio da dança. Ali estão presentes Iansã, Irôko (o tempo), Ifá e Oxalá. Na mudança para o estado gasoso a água se torna o ar. Que circula, às vezes de forma suave e às vezes com o vigor de grandes tempestades, com a marca registrada da liberdade pois segue em qualquer direção e contorna qualquer obstáculo. Aí trabalha Iansã. O mesmo vento que derruba árvores também espalha sementes e, com elas, o potencial de novas vidas. Em sua ação produzirá muitos segmentos, que somente serão percebidos mais futuramente. Entra aí em ação o Orixá Tempo. Responsável por insondáveis mistérios que podem resultar em grande sabedoria, acúmulo histórico de conhecimento que encontra sua aplicabilidade dando contorno vivencial ao que chamamos destino. Na dimensão dos destinos trabalha Ifá. Extremamente sutil é o resultado desse processo, quando se encerra no encontro com a dimensão maior do amor, e em sua expressão final como ternura, onde reina Oxalá.

Na “Religião Tradicional Africana” a comunicação dos Orixás e demais forças sobrenaturais com os humanos se dá por meio das “falas” dos odus (signos) no sistema divinatório Ifá. Ifá é também semelhante ao I Ching, método divinatório da cultura chinesa cujas figuras – os hexagramas – são formados por séries de linhas inteiras e partidas, semelhantes aos elementos que compõem as representações gráficas dos odus (Nei Lopes. “Ifá Lucumí – o resgate da tradição”. Editora Pallas, 2019). Para se ter idéia do porque é chamado de “sagrado”, tanto o Taoísmo quanto o Confucionismo deitam suas raízes sobre o I Ching (Richard Wilhelm, tradutor do livro para o inglês).

A observação do mundo em torno de si e em seu próprio interior levaram o homem chinês – assim como o africano – à percepção de um fluir contínuo do qual nada escapa. Tudo muda, toda ordem se desordena e se reordena ciclicamente. Opostos se alternam. Tudo muda, mas a mutação é imutável. Há que se compreender, então, os estágios da mutação.

No início, o Livro das Mutações era usado apenas como oráculo e consistia numa coleção de signos, onde o “sim” era representado por uma linha inteira (yang) e o “não” por uma linha partida (yin). Em um segundo tempo as linhas foram combinadas em pares, resultando em quatro possibilidades. A cada uma dessas combinações adicionou-se uma terceira linha, dando origem aos oito trigramas:

Cada trigrama foi associado a uma imagem: Céu, Terra, Trovão, Água, Montanha, Vento, Fogo e Lago, respectivamente. Mas as imagens representam não as coisas, em seu estado de ser, mas suas tendências de movimento. De modo a abranger uma multiplicidade de estágios nos ciclos de cada mutação as oito imagens foram combinadas umas com as outras, dando origem a 64 (sessenta e quatro) hexagramas, com linhas sobrepostas. mutações é o Tao, cujo postulado fundamental é expresso na mandala do Yin e do Yang.

A mesma idéia de ciclicidade é percebida nesses símbolos. Yin como energia mais densa, posta em movimento pela energia quente e etérea Yang. A figura onde duas gotas, uma branca e outra preta se enroscam, com um ponto de cor diferente na “cabeça” de cada gota não é uma imagem estática. É preciso ver movimento, vida nas polaridades complementares e interinfiltrantes.

O Yin se associa à noite e o Yang ao dia. Às seis da manhã e seis da tarde temos momentos de transição. Ao meio-dia e à meia-noite o máximo de intensidade de cada polo. Da mesma forma se dá, ao longo do ano, na sucessão de estações. Verão como Yang máximo, Inverno como Yin máximo e primavera e outono como estações de transição. E também ao longo da vida, na alternância entre infância (primavera), juventude (verão, yang máximo), vida adulta (transição, outono da vida) e velhice – o inverno existencial.

Em épocas e locais diferentes, duas das maiores e mais importantes civilizações da história da humanidade tiveram percepções semelhantes, que foram determinantes no desenvolvimento de sua agricultura, medicina, das regras de relações sociais e até na organização das burocracias de Estado. A expressão desses conhecimentos é simbólica. África e Ásia conversam. O texto é um convite para darmos ouvido à essa prosa, darmos significados aos símbolos, darmos a mão e entrarmos na ciranda. Vamos dançar?


Eduardo Macedo Amigo mineiro e grande entusiasta da Kuruma’tá. Médico clínico geral e acupunturista, mestre e doutor em epidemiologia. Mas também solidário, leitor afetivo de Jorge Amado e apaixonado pelos sertões.