Jandaíra quer ficar – Parte 3

Uma fábula estranha de Toinho Castro —


Leia Jandaíra quer ficar – Parte 1
Leia Jandaíra quer ficar – Parte 2


De volta a praia, no dia seguinte, Jandaíra ergueu a urna com as cinzas de sua mãe na altura dos olhos, contra o cenário de céu azul e ondas quebrando na areia que se descortinava diante dela. Girou levemente a urna, de um certo prata fosco, sem adornos, a não ser por umas delicadas ranhuras. Jandaíra pensou que era um objeto de bom gosto, em contraste direto com o uso, que era carregar as cinzas inúteis de alguém. “Talvez alguém encontre consolo nisso”, pensou Jandaíra, levantando-se e caminhando, segurando atenciosamente a urna, em direção ao mar.

Adentrou um pouco as águas mornas de Boa Viagem, até cobrir seus pés. Olhou a urna mais uma vez e murmurou: Mãe, você morreu. Abriu a urna e derramou as cinzas no mar. Boa parte foi soprada pelo vento, o que não incomodou Jandaíra. Talvez ela tivesse até respirado um pouco de sua mãe. Dizem que Keith Richard cheirou as cinzas do pai. Ou terá sido da mãe? Ela pensou nessas coisas e aproveitou que estava de biquíni e a maré baixa, que revelava os arrecifes, e deu um mergulho. Ficou boiando na piscina das águas represadas pelos arrecifes, aparentemente a salvo dos tubarões que, dizem, rondavam por ali.

Abriu os olhos e viu os céus acima dela. Pensou nos servidores, murmurando sob o peso de muitas atmosferas, no fundo do mar, talvez não muito distante da costa. Talvez em fossas abissais. Ou talvez seja tudo uma grande mentira, um grande engodo. Concentrou-se ao máximo para captar essas vibrações inexplicáveis na águas, mas nada. Nada além do que seja a água do mar e suas marolas, seus sons, seu toque na pele.

Já em casa, de banho tomado, banho frio. Cheiro de Neutrox no ar e roupas leves porque os dias andam quentes, mais que o necessário para essa época do ano. Jandaíra senta junto à janela e olha pra rua. Ninguém indo, ninguém vindo. Uma cidade que vai se esvaziando de almas e corpos. Jandaíra cremou o da sua mãe, mas os outros… “o que é feito deles?!”, pergunta a si mesma, sem ter um resposta clara, satisfatória. Ela pegou o gravador e começou:

Nada como um dia a trás do outro, uma praia e outro dia, pra esclarecer as coisas. Minha mãe morreu e restou dela uma simulação, um algoritmo tresloucado que acha que é ela. Minha mãe morreu e joguei as cinzas dela no mar. Fico agora pensando nos corpos que foram deixados para trás, que não foram reivindicados. Fico pensando no destino deles. Vala comum ou um grande crematório. Hoje, na praia, quando pensei nisso pela primeira vez, lembrei de Soylen green. Viu o filme? Alerta de spoiler: os mortos são transformados em biscoitos para alimentar uma massa faminta, num mundo sem comida natural acessível aos meros, cada vez mais, mortais.

Se aparecerem uns biscoitos por aqui… serão o pai ou a mãe de quem? Ou quem será? O fato é que o que restou dessas pessoas, esses corpos perdidos, estão tendo um destino que desconhecemos, sobre o qual ninguém fala. Até porque restou pouca gente falando nesse mundo…

O telefone tocou no meio da gravação e Jandaíra, como sempre, toda atrapalhada para atender no meio de outra tarefa, sem saber o que clicar ou o que deslizar pro lado pra poder atender sem perder o áudio.

— Eu falando!
(pausa)
— Eu sei…. eu sei que fiquei de te ligar. Foi mal. Muita coisa na cabeça. tendo que por em dia umas coisas atrasadas. Enfim… que queres de mim?
(pausa)
— Huum… sei.
(pausa) Sei.
(pausa)
— É… podemos ir sim. Hoje?
(pausa)
— Ah, tranquilo. Amanhã tô de bobeira. Posso te ver sim.
(pausa)
— Ué!? Não vai ser uma despedida, né?! Você não tá exatamente indo embora. E você estará sempre acessível, não é isso?! —
Jandaíra riu baixinho e esse acessível foi carregado de uma doce ironia, que Zé percebeu sem muita dificuldade mas deixou passar.
— Certo. Amanhã então. Vou de bike… quase não tem mais ônibus. Táxi nem se fala, já não tinha antes!
(pausa)
— Te vejo amanhã.

Jandaíra desligou o telefone e revirou os olhos de cansaço do mundo e das pessoas deixando o mundo. Quantos amigos ainda tinha? E os corpos? E os corpos?, perguntava-se Jandaíra naquele fim de tarde.