A dança do Verão

Crônica de Toinho Castro


Já não sou mais aquele sujeito que senta na mureta do Forte de Copacabana com inveja daquela gente do mar. Da última vez que lá estive, ainda nesse janeiro que finda, mirei uma moça com seu cachorrinho numa prancha de Stand Up Paddle. Me detive na alegria daquele cachorro que se jogava ao mar calmo e retornava à prancha sozinho. Sim, às vezes ele era meio inconveniente e a moça, sua parceira de alegria, tinha que resgatá-lo da água segurando pela alça de seu mínimo colete salva-vidas. Sem falar que, em tamanho diminuto, circulava pela prancha como se estivesse a passear num corredor, passando por baixo das pernas da moça, indo e voltando e saltando novamente, intempestivamente, bravamente, no mar.

Tava lá o cachorrinho no mar a se esbaldar, e eu ali na mureta, tomando café da manhã, invejando e pensando que um cachorrinho daquele tamanho, quase uma gota no oceano, se jogava destemidamente ao sabor do mar, enquanto eu relutava no meu medroso recanto do ser. Medo de subir na prancha, medo de cair, medo da onda que virá, e sim, ela virá, medo de nunca jamais me equilibrar sobre a planura, a planície daquele artefato, a prancha, tão bem explorado pelo cachorrinho aventuroso.

Olhe só. Raquel, minha companheira, com 14 anos de Cidade Maravilhosa, nunca havia tomado um bom banho de mar em Copacabana. A gente só ia em Ipanema, no Arpoador, um Leme ocasional… talvez devido a uma preguiçosa tradição que se formou nos meus 25 anos de Rio de Janeiro, por conta de pequenos acasos.

Mas no último fim de semana de feriado numa quinta, com a sexta imprensada ao nosso dispor, chegou a vez de Copacabana na vida de Raquel. Por conta daquele café da manhã no Forte, em que ela percebeu a calmaria daquele pedaço de mar, recostado ao Forte, acabamos fincando bandeira no Posto 6, ali juntinho da estátua de Dorival Caymmi, pela qual passei agradecendo as dádivas de Morena do Mar, Dora, rainha do frevo e do maracatu, O vento e outras tantas de generosa beleza. Agradeci e sentamos ali, naquela faixa estreita praia, naquele pouco espaço entre a cidade e o Atlântico.

O sal da água gelada do verão carioca nos renova sempre. É sempre essa vibração infantil ao pôr os pés no mar e mergulhar, com o alarido da criançada ao nosso redor. O vai e vem dos vendedores, as famílias reunidas sob a sombra auspiciosa da Deusa Barraca, o sabor da água de coco e esse céu sem nuvens, límpido, inacreditável, cortado eventualmente por aqueles enfadonhos teco-tecos de publicidade, carregando suas longas faixas amargas. Mas tudo bem, o mar é maior, o sal no corpo, nos cabelos, é maior. Danem-se os teco-tecos do mercado.

Dali mesmo, com minha cerveja na mão, eu mirava então o ir e vir das pranchas do tal do Stand Up Paddle, o movimento dos remos, de um lado pro outro, impulsionando o adentrar das águas de Iemanjá. Da minha parte, me foi ensinado que o mar não tem cabelos
que a gente possa agarrar
. Criado e crescido nas piscinas mornas do Recife, protegidas pela amurada dos arrecifes na maré baixa, o mar do Rio de Janeiro sempre foi de me deixar temeroso. Nunca deixei de curti-lo, de aproveitar suas ondas, seus dias de mansidão transparente. Mas tantas vezes cheguei na sua beira, molhei os pés e recuei, por conta de sua agitação, cá entre nós, exagerada e desnecessária. Frustração é a palavra pra chegar na praia no alto verão carioca e não poder entrar no mar. Ter que se contentar com o chuveirão… uma lição de humildade, do mar com nosotros!

Mas ali, na mansidão do Posto 6 de Copacabana, resolvi criar coragem e fui até a barraca das pranchas, a SupCopa 6. Fiz os acertos necessários e, depois de breves instruções, era eu que deslizava a prancha naquele mar, seguindo à distância, mas paralelo ao muro do Forte. Segui meu rumo com o coração a mil de emoções. Ainda sentando de pernas cruzadas sobre a prancha, já me sentia senhor de algo, senhor de algo em mim. Percebi rapidamente que não se tratava, em momento algum, de arrumar coragem, e sim disposição. Disposição de ser eu mesmo e me doar àquele território de natureza tão distinta daquele que habitamos e nos movemos, a terra firme. Tão distinto e ao mesmo tempo tão familiar e querido, impresso de tantas maneiras na memória afetiva, nas marcas da pele, no instintivo movimento de nele se jogar e saber o que fazer com esse corpo, ora desajeitado, ora desenvolto, em seu reinado de peixes, tartarugas, algas, corais, celenterados e toda sorte de criaturas que o povoam, desde a areia lavada pelas marolas às suas profundezas escuras e remotas.

Dois dias levei pra sair da casa de caramujo em que eu estava entocado sobre aquela prancha. Foi no terceiro dia que pensei: Se é pra ficar sentado nessa prancha, é melhor eu procurar um caiaque ou o que o valha! Foi aí que respirei, segurei o remo com as duas mãos, transversal ao plano da prancha, e me ergui. Me ergui, digo, que nem pássaro a voar, e num sentido novo de liberdade e alegria, dei minhas primeiras remadas de pé. Olhos no horizonte, no Pão de Açúcar lindo e reverente, céu pleno de azul. Sabe que dá uma emoção quando você entende, ou melhor, quando seu corpo, essa coisa que parece ser, mas não é separada de você, entende que não se pode ser rijo sobre o mar. É preciso flexibilidade, jogo de cintura, saber que espaço se ocupa nessa dança. Pois sim! Entendi que é uma dança em que minha parceira era a prancha. Essa compreensão foi súbita e reveladora. A prancha é meu par e é ela, na sua conversa com o mar, que dita o ritmo desse bailado. E é nela que me apoio com firmeza e ternura, os pés a ler seus movimentos, se ajustando em lampejos de energia que vão subindo para o resto do corpo, dando-lhe sentido e conforto. E uma confiança de que enquanto eu estiver nessa valsa, atento a minha parelha, atento aos sinais que ela e o mar te enviam o tempo todo, eu estarei bem. Eu não estarei só, mas integrado a uma natureza da qual a gente nunca deveria ter se deslocado.

Do alto da prancha olhei pro Rio de Janeiro, minha cidade. Que eu amo. Pela primeira vez, depois de 25 anos, desde que aqui cheguei pra morar, pude me dar a tranquilidade dessa visão. Copacabana se estendendo à minha vista… remei remei ao longo de seu litoral. Inevitavelmente pensei em quem a viu pela primeira vez, da amurada da embarcação, imaginando talvez o valor de toda aquela madeira a se perder de vista, subindo os morros, talvez absorto em algum sentimento que lhe era desconhecido, sentimento sentido ali, pela primeira vez. Encanto? Maravilhamento? O resto é história.

Ali estava, diante de mim, o purgatório da beleza e do caos. De longe os automóveis, como um rumor. O espanto de uma ou outra criança cortando o ar até ali, onde eu me encontrava, no meu pequeno milagre. Vi peixes céleres, e até uma tartaruga encantada que passou rente à prancha. Cumprimentei-a, porque fiquei assim meio bobo naquele salão em que eu e prancha dançávamos, cuidando um do outro e de si. Minha vontade era nunca mais sair dali. Mas na areia meu amor me aguardava. Devia tá de olho no mar, procurando pela minha figura. Ou nem… somente curtindo o coco gelado e as gentes bonitas a vagar pela areia, entrando e saindo da água nesse encontro gostoso com a ordem da natureza.

Subi naquela prancha fragmentado e retornei inteiro. Com uma consciência melhor de mim mesmo e do que sou capaz, com meu campo magnético, acredite se quiser, arrumado e ajustado ao da terra. Despedi-me naquele dia da minha parceira nessa dança de verão e cometi, não muito tempo depois, a indiscrição, com jeitinho de pequena traição, de retornar ao salão, iluminado pelo sol, sem ela, pra dar uns mergulhos e braçadas. Mas já sonhando e planejando a próxima festa, a próxima dança entre eu e ela.


Quero muito agradecer ao pessoal da SupCopa 6, que me estimulou nessa jornada que agora não tem fim. Grato pelas dicas e pela paciência com o marinheiro de primeira viagem. E também um super obrigado à turma da Barraca 187, do Jerônimo, que tá ali na gentileza e no apoio da água de coco, da cerveja gelada e da sombra boa nesse sol de verão.


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