Quatro poemas do Sertão Novo

Poemas de Wellington Silva


Foto: Santiago Manuel De la Colina | Pexel

A alma dela é terrosa

A alma dela é terrosa
Como o chão da fazenda
Ao pé da Serra Graviola
A alma dela é terrosa
E é aí que a flor floresce
Que a muda cresce
E um néctar seduz
A toda sorte de voadores
(Eu, vocês, nós e eles!)
Quantas vezes morrerei?
A alma dela é terrosa
E eu afundo as minhas mãos aí
Desenho em sulcos simétricos
Por desenhar, somente
E depois vou-me embora
Levando o restante de mim sobre as costas
A alma dela é terrosa, sim, de argila fina…
E um cordão de prata
Me arrasta de volta e desperto
Desviro-me ave, sapo, lobisomem,
E me pego com o rosto colado nela
À balada pequena de um rádio de som abafado
Minha barba antiga retém areia
Minhas mãos tremulam em seu corpo
E é igual a morte de aroma verde e cortante
De grama rasteira que o demo rebenta


Dois lugares

Dizem que o tempo passa
Nuvem que ninguém percebe
Arco, arcabouço, fumaça
Um ardor de amor perene

O campo cheio de aguerridos homens
Os estandartes, as lançam não cansam,
e nenhum grande fim ao nosso sangue, nunca
O vento quente e a poeira fina roem os nossos olhos

O herói é só mais um ser meio cego
e que chora às primeiras notas da canção
Envolvido em paixão confusa, esqueceu a própria mãe

E após, eu sempre digo — Assenta-te aqui,
amigo antigo! Conversemos! A palavra é abrigo
e o fogo não cessa de queimar em nosso
meio, amolecendo o ferro das espadas


Pele de argila viva

a pele furta-cor do homo universalis
no último discurso bendito da paz
(cê ouviu?)
parece a pele de plástico de um replicante

as mãos gigantes dos serventes de portinari
as três filhas da noite em as parcas de goya

a fuligem do archote de prometeu

todas estas cores têm a sua base no vermelho

a carne mesma retém essa luz oval da vida
que se pinta e que se diz

e anseia existir em paz             quando dá…

mas aqui também habitam certas moiras
(notamos serem todas
amantes dos coronéis)


voar

— de uma imagem em ilford b&w assombrosa

no meio mais entremeado da caatinga
no gris mais intenso da mata
no alto mais alto da serra craunã
o derradeiro profeta çampancê
numa gruta contra o vento luta
num movimento frenético de braços

o pó dos tempos no hiato das cigarras
existencialismo revelatório (dmt)

novo mundo jurema preta
o profeta é liberto/repleto
as epifanias das formas arcaicas
um alfabeto na textura dos lajeiros/
o saúda um anu-preto-deus
a loucura de entrever o divino

corre o profeta! seus pés de fogo/
sua voz fanha aguda grita aboiar

— arêrêêêêê!… arriááááá!… arriarrááááá!…
arroiôôôô!… rááááááiiiii!… irraiááááá!…arêrêêêêê!…

e o céu se abre na palma da sua mão vasada


Wellington Amancio da Silva é professor da rede pública, músico e mestre em Ecologia Humana. Publicou livros de ficção e de ensaios. Publicou-se dezenas artigos acadêmicos em revistas especializadas. A convite contribui à equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca. Fundou as Edições Parresia em 2019. Destacam-se Ontologia e Linguagem (2014), Figuras da indiferença (2019), Gumbrecht leitor de Martin Heidegger (2020), o reneval (2018), Primeiros poemas soturnos (2009), Apoteose de Demerval Carmo-Santo (2019), Os outros, sertão de argila escura (2021). Há publicações avulsas nas revistas Mirada, Ruído Manifesto, Germina, Gazeta da Poesia Inédita (Portugal), Magma (USP), Revell (UEMS), Letras Raras (UFCG), Literatura & Fechadura, Aboio, Diverso Afins, 7Faces, Eutomia (UFPE), Sítio (Portugal), Tyrannus Melancholicus.