A poesia de Renata Ettinger Revista Kuruma'tá, 17 de junho de 202217 de junho de 2022 “Gosto de pensar este como um livro sobre transformações e processos. O próprio título já traz a mudança. A mesma vida é outra é um livro de percurso, desses que a gente vai e volta e, se não estamos mais no mesmo lugar, também estamos. É uma espiral. Os recomeços insistem, incluem a estrada já percorrida e incluem nossas transformações. Por isso, também é um livro sobre estar em movimento, sobre o tempo e sobre estar viva”— Renata Ettinger Presença baiana na Kuruma’tá! Hoje a gente destaca a poesia de Renata Ettinger, com seu livro A mesma vida é outra. Sempre essa alegria de descobrir essas joias no inbox da Kuruma’tá. O tempo é curto e a equipe pequena, mas aos poucos a gente vai dando saída a todo esse trabalho bonito que nos chega, sempre surpreendendo. Li com imenso interesse a poesia de Renata Ettinger. Com encanto esbarrei em versos assim: eu, cheia d’água, / fui escrever… / molhei o papel. Que riqueza de imagem, que fala tanta coisa sobre o fazer poético, sobre o estar em si, ter essa ciência do que somos e do que nos fazemos do que somos. Paro agora de falar e deixo vocês com o melhor dessa página, os versos de Renata Ettinger. esse perigo uma pilha de livroscaiu hoje sobre a mesafui empilhando os livrospoema por poema quando a pilhadespenca ela me lembra dos poemas que não li ela me lembra dos poemas que não escrevisecretamente empilhadospor dentroesperando o exato momentode despencarem todosno papelna vozno que sou poemas empilhadosesperam para me ser eu sou essa pilha de poemasesse perigo de estar sempre na beirade me despencarpoema-inteira lapso líquido entre o que escrevoe o que vivotem um lapsode alguns segundos pensamentos se perdem em mimenquanto escrevo a palavra de antes meu futuro se perdedo meu textocai na mesatal como leite derramadoe é incapturável não cabe mais na garrafa que sou encharco um panocom o leite de um porvire corro até a piapara espremê-lo e deixar o futurodo pretéritoseguir seu fluxopelo ralo um lapso líquidoque se desfazenquanto escrevo seca insisto na poesiaque não quer chegar secou a fonte secou o poçoficou só o pó o copo, antes meio cheio, agoravazio inteiro,sujo de mãosde poeira insisto e minha palavra é sertão resisto suplicantepor uma gotaque seja e não caiuma lág-rima terra-palavra minha terra-palavrasofre com a seca sou toda a aridez do versoclamando por água acolher a pausaum sentir semente e esperar o tempo do verbo-chuva poema enxuto eu, cheia d’água,fui escrever…molhei o papel. e poderia não funcionarpapel e água e canetamas parece que,com a água,as palavras fluem melhor… agora, estendo no varalo papel encharcadode palavras-lágrimase deixo secarao sol… me comove saber que, em algum momento,o papel irá secare as palavras-lágrimasainda vão estar lá,molhando os sentimentos… e o poema, enxuto,há de fazer sentido. atemporal sangro presentea cada amanhã eu não sei me conjugar futuro conjugo agoras que é quando seio tempo que sou desfuturos a gente conjuga o verbo amanhã como se futurofosse a gente esqueceque amanhão verbo é hoje exercícios para uma angústia que não cabe 1 o corpoé um copo de angústias copo que está sempre até a boca quanto de angústiaainda me cabeeu não sei tempo o corpoé um copo cheiode angústias tempo o corpo é um copojá cheio de angústiasque não se sabequando iráse irá transbordar a qualquer tempo-angústiao corpo-copoirá quebrar corpo-copo em cacosexistindonum mundo de angústias temponão há 2 a angústia e seu fôlego as estruturas da casanão se sustentam experimentar derreterdissolver-se nesse mar o sal da angústia escorree não há lenço que contenhaessa águae não há tempo para voltarao que já não é uma angústia-pena pesa no ar um tempo sem ventome ensina o voono chão 3 quanto pesaum quilo de angústia? perguntei sabendoo tamanho do fardoque iria carregar o preço não perguntei examinei meu copopara achar em mimonde coubesse querendo meu corpo expandir-se do que soume desfazerdos meus descabimentos trincada ou em cacoscarrego esse quiloque não sei quanto pesa ou se posso o preçonão perguntei desabapoema quando pareçodesabarcorro pro poema e poetafaço minha cena, dou trela estremeço os verbos pra ver o que cai às vezesdesabono choro outrasem mim alinhavos minha mãe sempre olhouo avesso das roupaso cuidado com os acabamentossempre lhe disse muitouma costura mais tortaum forro barulhentotodo o invisível quepoderia interferir no caimento às vezes cabia uma pinça para realçar as estruturasmas ela sempre faziaum alinhavo antes de passar qualquer costura hoje olhandomeus avessosvejo o quanto tenho cuidado dos acabamentosreparo nas linhas soltastrabalho em cada costurafazendo sempreum alinhavo antes de firmar as estruturas minha mãeme ensinou a me costurar fluxos a mesma vida testa seu fluxoem mime vira do avessopra ver se estoudo meu lado certo a outra vida me testapra ver se soua mesma ou se sou outrahabitando o mesmo corpo a outra vidaé sempre a mesma a mesma vidaé outra a cada dia e sou sempre a mesma e a outraa testare atestaras vidas existindo apesar a vidaexistindo apesardo tempodo medo de mim existindosendo a mesmasendo outra apesarde ser a mesmade ser outra a vidaexistindo existindo apesarde não sabermosa vida Compre seu exemplar aqui Baiana, nascida em Itabuna, Renata Ettinger é uma poeta e dizedora de versos que encontrou na palavra um lugar de ser. Publicitária e arteterapeuta, ela fala pelos poemas desde os 12 anos. “A mesma vida é outra” é o seu terceiro livro de poemas. Também publicou os livros “GRITO: silêncios ecoando em minha voz” (2020), “Oito Polegadas” (2018) – uma coletânea lançada com os poetas Mário Garcia Jr., Nalini Vasconcelos e Ricardo Guedeville – e “Um eu in verso” (2002), todos de forma independente. Leitora voraz de poesia contemporânea, durante o período de isolamento social, realizou o projeto “Quarentena com Poema (QCP)”, em que compartilhou um poema em áudio por dia com amigos e interessados em poesia. Foram 215 dias consecutivos de poesia para ouvir e sentir, com mais de 70 autores contemplados. Depois, Renata criou o podcast “Trago Poemas”, iniciativa que caminha para o segundo ano em formato semelhante ao QCP. Ambos podem ser conferidos nas principais plataformas de streaming (Spotify, Deezer, Google Podcasts, entre outras). Para mais informações, basta acessar o instagram @renataettinger. A