A poesia de Wendel Golfetto na Kuruma’tá

O Inbox Mágico da Kuruma’tá nos brinda hoje com a poesia do Paulistano Wendel Golfetto. Pra nós é sempre essa alegria, que alguém nos escreva um e-mail dizendo que escreve poesia, ou crônica, ou o que seja, querendo publicar com a gente. Felicidade essa de ver as pessoas se engajando no projeto independente, livre, da Kuruma’tá. Seja bem-vindo, Wendel. Seja bem-vinda sua poesia.

Montagem sobre fotos de Miss Pueblos mágicos e Lucas Pezeta

A Dama de Preto

Nas ruas lavadas pela chuva,
Em desesperado vagar,
Pela madrugada de corpos
Esculpidos em curvas,
Estava a te procurar.
No copo,
A encerrar o vinho,
Mantenho-me fixo
Em eternizados segundos
De um olhar desnudado.
Sua língua a umedecer lábios que sucumbo
Em ardente vermelho,
Refletindo beleza no imponente espelho,
Na suntuosa noite de um céu cinza-chumbo.
Em teu sorriso discretíssimo,
Meu pensamento
Residente no vácuo
De uma taça com destilado líquido.
De seu cabelo solto em sua tez,
Em sono que a encobre com delicada seda,
O despertar de um sentido adeus,
Que no peito se hospeda.
O amor que goteja
Dilui-se em litros na sua presença,
Sob o abrir de seus lindos olhos,
No devastador leito de um ninho.
Despeço-me com o desinteresse fingido.
Deveras, não mais vejo a beleza no mundo
De luzes que fascinam os trópicos úmidos
– Tão somente em noites góticas contigo.

 


Fantasma

Um fantasma no móvel escultural,
Soprado no assovio de uma ventania,
No apagar de luzes de um dia invernal.
Os ponteiros a apontar para o leste
– açoitada visita sem hora marcada –
No apogeu de sombria madrugada.
De origem fétida – matéria orgânica.
Criatura: peço-lhe que a minha casa não infeste.
O que desejas, ser, que a mim causa repugnância?
Digo-vos: vinde diretamente do profundo.
Foste convocado ao inferno.
Causais-me assombro.
Se nem mesmo criaturas imundas assassinei,
Por que seres malvados não assombrais?
Por que minh’alma fora reprovada?
Dizei-me!
Como arauto apocalíptico
Em sua mente lhe trouxe mortes bizarras.
Como quereis seja sua beleza desfigurada?
Seus atos de bondade de nada lhe serviram.
Assassinaram tua esperança, cidadão distinto!
Não há vaga em celestial vida vagarosa;
Mandá-lo-ão aos quintos sem demora.
Mas e o Deus paterno?
Castigai-me!
Salvai-me!
Não pesarão os pais-nossos rezados aos milhares
Sem contar as preces em que fui citado?
Quem te disseste?
Rezaste só por ti
E o fizeste em falsidade.

Ademais, não existem dois serem distintos.
A dualidade é imanente a toda criatura,
Mesmo a mais excelsa.
Deveria ter notado que neste mundo
O comando é o da vontade,
Da natureza que canta os ditames
Sem clemência ou piedade.

O sofrimento é a ordem.
Mata-se de forma copiosa.
Por que achaste que do outro lado
A vida seria plácida e tediosa?
Neste mundo não há sequer espaço.
Após a caçada,
O tédio engana,
No silêncio do pavor que antecede
A penetrada de nova lança.
Quem está lá?
Todos que conheceste em vida,
Exceto os poucos que amaste.
Encontrarás novamente os tolos,
Os invejosos, os falsos,
Enfim, todos os teus amigos!
O que lhe parece?
Eis o inferno!

Mas prega-se na casa do Senhor
A salvação para os que Nele creem.
A casa do Senhor é no descampado,
No tumular noturno das presas.
Ser frágil – imprestável!

O onipresente está na alma de quem caça ou da presa?
Grita dentro do predador pelo êxito da morte iminente
Ou no âmago da carne dilacerada da vítima em
ardência?
O que representa a ti um inseto?
Não sei
Quantos mataste?
Muitos,
Mas qual a importância disso?

Vede!
O fizeste porque lhe pareceram insignificantes.
E o que haveria de ser tu a um Deus, criador do
Universo?
A tua vida é um cuspido no chão sujo.
Os vergéis do paraíso são delírios
De mentes desesperadas.
Somente os mais sábios já previam a infinita caçada.
Não acordarás.
Teu corpo cintila no frio
Da massacrante noite estendida.
Teu sonho de infância se realiza.
Tens agora o poder de voar,
Após vida adulta extinta.
Teu pouso não será neste mundo.
No teu desterro fenecerás,
Na infinitude contagem tumular dos segundos.

 


Inverno Interior

Egresso do inverno interior,
Não mais me reconheço
No espelho de oblíqua noite.
Em mim, o atroz frio cortante
— sensação de iminente horror —
Já não sei o que alucina, o que é torpor.
Nefando lampejo,
A sombria estação
Congelou os pássaros no parque.

O lume brilha fosco,

A noite tremula em cintilante febril,
Tudo escoa no ser de foz horripilante.
Nesse diapasão,
O frenesi despertar
De aguda dor da morte,
Nascida de minhas tristezas,
Prometendo me libertar
Do fardo castigo da eternidade.

 


Locus

Emboca e se desloca,
Embora se conforte na desdobra,
Na oca de cada cumbuca
Se estufa na tumba da retranca
Entravada no agonizante flutuante,
No desgosto tosco do enrosco dos outros,
De nossos futuros obscuros, confusos e sujos.

Arcos amarrados nos barracos,
Estados preclusos e inacabados,
Buracos profundos e elucidados,
Mentes doentes e incontinentes,
Diabos cansados e perturbados,
Criaturas imundas e divergentes.

Moralmente ilegais e inconsistentes,
Seres necrófilos, indecentes,
Seres humanos insuportáveis e indolentes.

Que, entretanto, andando por aí percebi
Sem sentir a fraqueza quase demente
De pessoas horrorosas, odiosas,
Tidas como inescrupulosas,

Que são todos gente!


Wendel Golfetto – Nascido na capital paulista, formado em Direito pela PUC/SP e servidor público. Divulgação de poemas na internet:  https://www.instagram.com/sanatoriodamente/

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