A promessa

Bem-vindo à Kuruma’tá, Fábio Gonçalves, com esse texto delicioso, que fala de fé, de resistência, ou será teimosia? Crônica da vida miúda que se agiganta quando olhada de perto. Vem de Minas, esse sopro.

Texto de Fábio Gonçalves


“A Adoração dos Magos”, de Domingos Sequeira (1828)

Era festa de Santos Reis no pequeno distrito de Água Boa, lugarzinho pitoresco e de clima fresco, fincado no topo de uma verde e calma colina donde se tem, até hoje, uma vista alegre.

A cidadezinha calma, serena e tranquila, atraía todos, de diversos cantos, para as costumeiras homenagens aos Três Reis Magos, padroeiros do lugar.

Feito uma moça bonita que se apronta inteira em dia de festa para ver moço bonito, preparou-se toda, com fitas e cores para receber gente de tudo quanto é canto, que cismou de encontrar aqui o Menino de Belém.”A Adoração dos Magos”, de Domingos Sequeira

Militante ainda jovem na Igreja, eu aguardava, no interior da nave, por um grupo de jovens que viria preparar, comigo, a liturgia de uma das costumeiras missas da tradicional festa. Sentado num dos últimos bancos, olhava, displicentemente, o movimento dos transeuntes lá embaixo, na praça. Meu olhar se perdia no ir e vir dos fiéis que se aglomeravam diante da capela.

De repente, adentra a igreja, um senhor magrinho, de ares rurais, testa franzida pela difícil lida na roça, entre apressado e preocupado e caminha pelo corredor central, aproximando-se do altar. Tira seu chapéu de massa, apoia-o sobre o peito, dobra os joelhos com dificuldade e faz uma piedosa reverência diante do altar principal.
Vendo-me ali, aproximou-se, timidamente e disse-me:

__ Óia, esse minino. Eu queria pagar uma promessa que fiz pra Santos Reis!

Era costume pagar promessas, depositando aos pés do santo milagreiro, algumas cédulas de dinheiro, como se o santo cobrasse pelo serviço, gesto que ainda hoje perdura, no intuito de agradecer alguma bênção.

— O senhor fique à vontade. — Orientei-lhe.

Ele procurou com os olhos as imagens dos Três Reis Magos. Percorreu com suas cansadas pupilas todos os altares, até parar sobre o nicho onde, certamente, estariam os Santos Reis. Não os encontrou.
Uma ruga de preocupação se desenhou na sua testa, marcada pela dureza da vida e pelos sacrifícios cotidianos.

Solícito e, percebendo a aflição daquela pobre alma, informei-lhe que as imagens dos Santos Reis não se encontravam mais no interior da igreja, pois foram roubadas a algum tempo por algum meliante que nada entende de promessas nem da boa fé dessa gente. A palidez daquele senhor me comoveu. Ele, por sua vez, indignado, indagou:

— Ora, como vou pagar minha promessa se os santos pra quem eu prometi não estão mais aí?

Expliquei-lhe, calmamente, que poderia deixar o dinheiro diante de qualquer altar, afinal, onde quer que ele depositasse a sua doação, ela serviria mesmo era para ajudar nas obras da Igreja.

Ele continuava irredutível e eu percebi o seu desapontamento. Era como se ele tivesse que pagar uma dívida à outra pessoa com quem não tinha feito nenhum trato. Sua consciência não estava tranquila.
Tentando resolver aquele impasse entre o fiel e o santo (que por sinal era um trio), e querendo promover a paz e a concórdia entre Deus e o homem, disse-lhe:

— Seu Sebastião, como o senhor deve ter percebido, as imagens dos Santos Reis, a quem o senhor prometeu retribuir alguma graça, não estão mais aí. Foram levadas sem permissão do padre, de Deus e muito menos delas. Isso, porém, não impede que o senhor pague a sua promessa. Pode fazê-lo diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus. Afinal, Jesus é maior do que qualquer outro santo. É o chefe de todos. E é Ele o grande detentor de todas as graças.

Ele ouvia com atenção cada sílaba que eu pronunciava. Eu insistia para que ele se adaptasse à nova realidade para que tudo se resolvesse. Reforcei-lhe que Jesus estava aguardando.
Sem se convencer, ele retrucou:

— Eu não fiz promessa pra Nosso Senhor. Foi pra Santos Reis.

Um dos dons que Deus se esqueceu de me dar foi a paciência. Mas naquele dia, Deus apiedou-se de mim e abarrotou-me, da cabeça aos pés, de uma aura de calma e de harmonia tamanhas que nem se o teto desabasse inteiro sobre mim, tiraria da minha face, aquela feição de santinho de igreja barroca.

A testa daquele senhor franziu-se repetidas vezes. Ficou ali parado por alguns instantes, como se tentasse, por si só, resolver aquele terrível impasse.

Depois de alguns intermináveis minutos, ele se deu por vencido, mas não convencido. Percebi pelo semblante carregado o seu desapontamento.

Foi lá, e, meio contrariado, deixou sua prometida esmola aos pés desnudos da imagem do Sagrado Coração de Jesus.


FÁBIO GONÇALVES é mineiro do Distrito de Vista Alegre (Água Boa) no município de Claro dos Poções (MG). Professor dos anos Fundamental e Médio há mais de 30 anos, desenvolveu ao longo da vida e da carreira, um amor incondicional pela literatura, arte que defende enquanto escritor, poeta e professor de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino.
É graduado em Letras pela PUC (Pontifícia Universidade Católica – MG), pós graduado em Supervisão e Orientação Educacional pela UNICID (Universidade Cidade de São Paulo) e Mestre em Letras, pela UNIMONTES (Universidade Estadual de Montes Claros – MG). É compositor, intérprete e vocalista de música sacra e popular, artista plástico, autor de textos teatrais para crianças e jovens, além de contador de histórias.
Trabalhou como marceneiro, fabricante de brinquedos, balconista de comércio e agente postal. Desde criança, desenvolveu o hábito da leitura, lendo clássicos infantis, poesia e prosa brasileira.
Em 2013 iniciou uma nova viagem ao mundo das letras, quando publicou o primeiro livro de poesias dedicado ao público infantil “E aí, Bicho?”, que lhe rendeu, além dos pequenos fãs, uma sala de leitura em Itaguaí, no Rio de Janeiro, chamada Sala de Leitura Professor Fábio Gonçalves. 
Publicou as obras: Cristais (Litteris Editora – 1999/RJ), Do Fundo do Poço (Kroart Editores – 2004/RJ), Anjo, Retratos de uma Paixão (Quártica – 2009/RJ) E aí, Bicho? (Litteris Editora – 2013/RJ), Lalá, a lagartinha mágica ( Litteris Editora – 2019/RJ). E em antologias: Antologia Poética Poesi Brasil (DGF Edições – 1999/BH), Antologia Poética Poesi Brasil (DGF Edições – 1999/BH) e Excelência Literária (Litteris Editora/RJ), Florilégio do Brasil (Editora Pindorama, 2021/SP) e Poesia Livre 2021 ( Vivara Editora Nacional/ PB), Antologia Sarau Live de Poetas 2022 ( Editora Delicatta /Belo Horizonte/MG).