Por onde anda a cena poética contemporânea de Alagoinhas? Revista Kuruma'tá, 27 de março de 202310 de outubro de 2023 Texto de Lucas Carneiro Nascido em Salvador – BA, possui 21 anos e atualmente reside na cidade de Alagoinhas – BA. É graduando do curso de Letras, Língua Inglesa e Literatura pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Desenvolve pesquisas sobre poesia moderna em expressão anglófona, com foco no processo de antropomorfização através da força da palavra poética. I No curso dos últimos anos, algumas reflexões permearam com total intensidade pelo meu subconsciente, em especial aquelas que giravam em torno da cena poética do município onde resido desde a infância. Assim, levando em consideração o papel fundamental que a literatura desempenha em nossas vidas, ampliando o senso crítico, a sensibilidade e a humanização, indago: Por onde anda a cena poética contemporânea de Alagoinhas? Qual o panorama atual da poesia alagoinhense? Em meio a sociedade contemporânea gerida pela força da globalização e suas nuances objetivistas, é perceptível a presença de um completo distanciamento entre a atividade poética e a sociedade, ocupando, por assim dizer, um espaço marginalizado. Daí, como bem afiança Bosi: “vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio” (BOSI, 1977, 143)1; situações duramente enfrentadas pelo poético como tentativa de se inscrever ante ao mundo moderno obnubilado pelo fluxo da reificação. Esse topos do divórcio, como bem acentua Siscar (2010, p. 41) em seu ensaio sobre o discurso da crise na poesia moderna1, foi observado por Camões na estrofe 145 da sua magnus opus Os Lusíadas (1572), ao afirmar, em tom cético e descontente, que a lira se encontra completamente descompassada; e o poeta, por sua vez, exaurido, com a voz afônica de cantar a gente surda e endurecida. Nessa mesma perspectiva, o sujeito lírico do poema O poeta pras cadeiras (1970) de Zuca Sardan2 afiança que o bardo cumprimenta o seu público, entretanto, as cadeiras não podem sequer oferecer-lhe uma salva de palmas, pois estas se encontram completamente desocupadas e, mesmo possuindo braços e pernas, não há mãos a medir. Tais situações constatadas por ambos os poetas se inscrevem com total força na contemporaneidade. Uma época desoladora marcada pela crisis, pela perda de prestígio e desvalorização dos discursos artísticos e ficcionais, cuja poesia, como uma maneira de cravar sua resistência frente ao presente cada vez mais indisponível, necessita se desdobrar a cada instante. Assim, de modo a superar alguns dos impasses gerados pela modernidade no que concerne o fazer poético, apontamos para uma necessidade de promover uma maior difusão, na esfera social, da cena poética contemporânea – visando não só expandir como também reconhecer alguns nomes dessa nova geração de bardos que através da potencialidade advinda das suas obras movimentam e contribuem para um maior enriquecimento do cenário literário/ cultural local. Uma atividade que infelizmente ainda se apresenta timidamente no território municipal de Alagoinhas, pois a maior parte das atividades e projetos referentes à mobilização e divulgação da cena literária local tem sido realizada por parte de uma única instituição. Trata-se da Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL)3, que com o apoio advindo dos seus membros e de alguns representantes do poder legislativo vem fomentando o lançamento de antologias, a idealização de concursos literários, e promoção de encontros e palestras visando uma maior difusão dessa nova legião de escritores do município baiano. II No dia 11 de agosto de 2022, a Casa do Poeta de Alagoinhas lançou a sua mais nova antologia intitulada Jovens Florescendo na Literatura (2022); livro que reúne cerca de 30 poemas e contos produzidos por jovens entre 10 e 18 anos. A idealização da obra surgiu após o I Concurso Literário Infanto-Juvenil promovido pela mesma instituição entre os meses de março e junho, que contou com o incentivo das redes públicas e particulares de ensino de Alagoinhas e região, e apoio de alguns escritores como por exemplo o satirense Luiz Eudes. Neste sentido, em meio ao presente, onde as discussões referentes ao estado da literatura e dos discursos artísticos se apresentam cada vez mais frequentes, a propagação de tais eventos no meio social surge como uma maneira não só de estimular a produção literária e a prática assídua da escrita, mas também demostrar que a poesia, ou melhor, o discurso artístico em geral resiste; e sua resistência possibilita com que a cena literária contemporânea se apresente cada vez mais viva e diversificada. Diversidade esta que se torna perceptível quando levamos em consideração o poema intitulado Palavras não ditas (2022), escrito por Jorge Vieira de Carvalho, estudante de 17 anos da rede pública de ensino. Palavras não ditas: O silêncio às vezes fala mais alto que qualquer palavraPresa dentro de mim e perdida aos olhos do erroEntre dias vazios que me fazem refletirAquilo que um dia sonhei para mim. Sou aquele que pensa e repensa.Deixado ao vento e enganado pelos desejos da vidaEntre labirintos escuros sendo aquilo que um dia pensei que fosseEntre palavras não ditas!Sou aquele que renasce das cinzas.4 A obra que integra a coleção Jovens Florescendo na Literatura (2022), está estruturada em duas estrofes. A primeira caracterizada pela presença de quatro versos, e, a segunda, por cinco versos. Notemos que sua forma de composição é bastante simples, com esquema métrico organizado majoritariamente em versos brancos. Entretanto, é perceptível a presença de algumas rimas nos versos finais da segunda estrofe – entre as palavras ditas e cinzas – que concedem um ritmo e sonoridade ao poema. Para tanto, adquirindo um tom confessional, a persona poética introduz a sua tessitura realizando algumas reflexões frente ao silêncio. Assim, descreve a sensação de quietude como um sentimento forte e um tanto quanto perturbador. A potencialidade dessa vivência íntima se torna percebível através da extrema capacidade do silêncio proferir, em tons altos, palavras que soam mais agudas que qualquer outra presa no seu interior, perdida aos olhos do erro. Posteriormente, notemos que o eu lírico descreve os dias de monotonia como aqueles pelo qual as ponderações acerca dos seus anseios internos se intensificam. Sob esta perspectiva, é notório que há, ao longo dos versos da primeira estrofe, a presença de uma certa sensação de angústia intercalada a um contínuo estado de ansiedade; dois aspectos que saltam a vista e se concretizam mediante aos intensos pensamentos que permeiam incansavelmente pelo subconsciente da voz poética frente ao porvir. Durante a segunda estrofe, o eu lírico afirma ser um sujeito coerente, que mantém sempre uma postura reflexiva a respeito de si e das coisas que estão ao seu redor. Deste modo, afirma que em meio a todas as inquietações íntimas, aos acontecimentos tormentosos, as situações pelo qual foi deixado de lado, aos enganos frente aos desejos da vida; entre os labirintos escuros e palavras (antes) não ditas, o mesmo, tal como a fênix que carrega em seu seio mitológico o arquétipo da imortalidade, ressurge das cinzas – expressão que surge como maneira de traduzir todo caos interior vivenciado pela persona. Assim, tal como o renascimento do sujeito lírico de Palavras não ditas (2022), por via do tormento e da aflição, a poesia contemporânea, também incorporando o lado místico da fênix, ressurge com total ímpeto e vigor por intermédio das suas cinzas, ou, mais especificamente, do seu estado atual de crisis. Um aspecto que aponta para força da expressão lírica de Jorge Vieira, como também reforça a potencialidade da cena poética atual alagoinhense. III Para além do lançamento da obra Jovens Florescendo na Literatura (2022), é importante destacar o papel fundamental desempenhado pela CASPAL e seus membros no lançamento da antologia poética Bardos Baianos: Litoral Norte e Agreste Baiano (2022). Em uma época desoladora marcada pelo fascismo e autoritarismo, onde a poesia moderna foi “compelida à estranheza e ao silêncio. Pior, foi condenada a tirar só de si a substância vital” (BOSI, 1997, p. 143), a obra reflete um trabalho magistral, desempenhado com extrema qualidade e dedicação. Trata-se de uma das maiores antologias poéticas realizadas em solos baianos nos últimos anos, tendo como principal objetivo fomentar o fazer poético na região – perpassando por diferentes cidades de modo a valorizar cada vez mais essa nova geração de bardos, além de ampliar os diálogos entre os demais escritores que, através da qualidade advinda das suas obras, contribuem para um ainda maior engrandecimento da literatura baiana. O projeto idealizado por Ivan de Almeida, coordenado e articulado no território do litoral norte e agreste baiano por Luana Cardoso e Vanessa Paz, contou com a participação de 50 poetas, sendo 38 naturais da cidade de Alagoinhas. Um número que aponta para a extrema vitalidade da atividade poética no município1, com pessoas empenhadas na produção de poemas que transitam entre os mais diversos estilos; ecoando suas vozes através das múltiplas temáticas contemporâneas que possibilitam o sujeito a refletir cada vez mais sobre si, o mundo e as coisas que se encontram ao seu redor – como é o caso do poema Habitar (2022) de Madrilena Berger: Habitar HabitarO mar, sol, areia, sereia.Cavalo alado marinho cor do ninho.Baleia maior mama sem dor.respirar por espiráculo.Constante choque no tocar,Peixe elétrico neutralizar no fundo do mar.Asa aberta metro tentáculos.Água viva cnidoblastos,Lança vítima alimentar.Busca constante sobreviver,Não encontra ar puro,Procura água límpida, encontra lodosa, fétida.Economia faz destruição do próprio ninho,Chamada terra, seres em extinção, ó homem cão! [^5} Notemos que a poeta situa sua tessitura numa questão bastante atual, cujas discussões ao longo dos anos têm sido fortemente intensificadas frente ao contínuo processo de degradação ambiental. Realizando uma espécie de eco crítica – aspecto que marca presença também na lírica de outras poetas como Adélia Prado – a voz poética, ao longo da sua obra, aponta para os reflexos da ganância exacerbada do sujeito humano e suas trágicas consequências a mãe natureza. Com relação a sua forma de composição, é perceptível que o poema está organizado em uma única estrofe que se caracteriza pela presença de quinze versos. O esquema métrico está estruturado majoritariamente em versos brancos; entretanto, se faz visível, ao longo do corpo textual poético, a presença de algumas rimas internas que concedem uma sonoridade ao poema. Deste modo, o eu lírico introduz o seu poema com a presença de um verbo que segue o mesmo título do poema: habitar. Habitar surge como um desejo profundo da persona em residir nas belezas que compõe a mãe natureza: o sol, o mar, a areia. Notemos, ainda levando em consideração o seu querer, que a voz lírica evoca alguns seres mitológicos, como por exemplo a sereia e o cavalo arado marinho – o último, visto como uma espécie de fusão entre Pegasus e Hippocampus. Adiante, oferece algumas imagens de animais marinhos, como por exemplo a Baleia maior, vista nesse contexto como uma referência direta a baleia azul – mamífero marinho que se encontra ameaçado de extinção devido as caças comerciais. O peixe elétrico que produz descargas elétricas como uma maneira de neutralizar seus predadores e, acima de tudo, escapar de qualquer tipo de ameaça. Como também a água viva, que com seus cnidoblastos (pequenas células que se encontram presentes nos tentáculos como uma forma de autodefesa) lança vítima alimentar. Nos versos seguintes, os reflexos do comportamento humano frente a mãe natureza se intensificam. Em vista de tais tensões, a voz lírica afirma que os animais que compõe o nosso vasto ecossistema lutam constantemente para sobreviver. E, frente ao contínuo desmatamento, exploração e poluição, aspectos responsáveis pelos impactos destrutivos ao meio ambiente, os seres vivos não encontram ar puro para manter sua vitalidade. Assim, os animais marinhos buscam constantemente águas límpidas para sobrevivência, diversidade e reprodução, entretanto, devido a cruel força das ações humanas sob o meio a natureza, encontram apenas lodosas e fétidas. Por fim, a persona poética finaliza sua tessitura afirmando que a economia faz destruição do próprio ninho chamado terra. Nesses versos, se faz visível a presença de uma crítica direta ao capitalismo e suas nuances objetivistas, responsáveis por acelerar cada vez mais o processo de reificação – fazendo com que o ser humano desenvolva comportamentos opostos à sua condição humana, adotando uma postura objetivista e empedernida com si e as coisas que estão ao seu redor. Para tanto, o poema Habitar de Madrilena Berger, intervindo de modo direto na realidade social no qual estamos inseridos, se dispõe a nos alertar, por via da força catalisadora dos seus versos, a respeito do comportamento cruel e desumano que desempenhamos constantemente para com a mãe natureza, que oferece elementos essenciais para sobrevivência humana. IV Em tons de considerações parciais, este ensaio orbitou em discutir a respeito da cena poética contemporânea alagoinhense, tendo como objeto de análise dois poemas que integram duas antologias lançadas recentemente em solo baiano. Deste modo, se torna perceptível a presença de uma certa vitalidade e diversidade da atividade poética produzida no território. Entretanto, constata-se também uma dificuldade por parte das autoridades6 em proporcionar uma maior divulgação da cena poética/literária local, bem como oferecer um apoio aos autores que movimentam o panorama cultural do município através das suas produções. Isto posto, num país nebuloso rasgado pela opressão, desigualdade e autoritarismo, a poesia se faz extremamente necessária para resistirmos ante aos tormentos da realidade e suas amarras dispostas no cotidiano. Ao considerar tais fatores, entendemos, tal como acentua o poeta e ensaísta Antônio Brasileiro (2012, p. 145)7, que não é dever da poesia promover a salvação: “A poesia, é claro, não salva coisa alguma. Nem está aí para isto.” Mas sim conceder, por intermédio da força catalisadora da palavra poética e sua capacidade reveladora, um sentido direto à vida ao possibilitar intensas aproximações humanizantes – intervindo de modo crítico na realidade e práticas sociais cotidianas. 1. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Editora Cultrix, 1997 2. SARDAN, Zuca; DE HOLLANDA, Heloísa Buarque. O poeta pras cadeiras. In: 26 poetas hoje. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2021.)) 3. A Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL) 4. CARVALHO, Jorge Fernando Vieira. Palavras não ditas. In: Jovens Florescendo na Literatura: I Concurso Literário Infanto Juvenil. Alagoinhas: CASPAL, 2022. 5. BERGER, Madrilena. Habitar. In: Bardos Baianos: Litoral Norte e Agreste Baiano. Salvador: Editora Cogito, 2022. 6. No ano de 2022, a câmara municipal de Alagoinhas através das vereadoras Jaldice Nunes e Juci Cardoso, concederam aos escritores locais a medalha Maria Feijó em reconhecimento as grandes contribuições advindas das suas obras para um maior enriquecimento do cenário cultural e literário local. 7. BORGES, Antônio Brasileiro. Da Inutilidade da Poesia. Salvador: Editora EDUFBA, 2012. A