Independência Poética: Dheyne de Souza

Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA

Poeta de hoje: Dheyne de Souza

Dheyne de Souza é poeta, goiana e feminista. Publicou poesia no livro lâminas (Martelo, 2020), além da plaquete era uma promessa; era pra cuidar; ela engravidou; ela se perdeu; (lola frita, 2022). Faz parte de um coletivo de poetas mulheres (@bidecoletivo), com uma antologia a ser lançada em 2023 pela Editora Urutau, selo Hecatombe. Está no prelo, pela editora Aboio, seu primeiro romance. É doutoranda em Literatura Brasileira (USP). Usa a rede social @dheynedesouza.

O que te inspirou a começar a escrever?

Não me lembro muito bem o que exatamente me moveu a começar a escrever. Talvez tenha sido uma série de circunstâncias, como a vontade de ficar só, a ânsia de inventar mundos e personagens, a curiosidade pelos detalhes do chão. Acho que escrevo desde muito criança, antes mesmo de saber grafar as imaginações. Um pouco aérea, um pouco estranha, um pouco calada, penso que tudo isso foi se misturando entre o que eu parecia, o que eu era e o que venho (sub)vertendo em escrita. Talvez as várias faces e fases do silêncio. Talvez o barulho incontrolável do mundo, das pessoas, das faltas. Tomara que tudo.

O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias?

Hoje em dia, eu espero. Já houve época em que me desesperava muito por não conseguir escrever, inventava que estava passando por fases, que depois viria uma transformação mirabolante e uma nova vertigem na linguagem. Mas agora entendo que faz parte do processo. Pode ser que, à medida que os anos vão passando, a vida vai se mostrando mais feroz, travando uma luta conosco, nem sempre justa, nem sempre leal, especialmente se somos mulheres. Fico pensando que depende de nós mesmas e de nossas circunstâncias várias, quem sabe, sopesar o que vale a pena. Confesso que, muitas vezes, deixo algumas armas de lado e deito no campo. Recuperar forças, escudos e ânsias. Digo a mim mesma que me tornarei mais inquebrantável. Às vezes funciona

Seu maior sonho como escritor(a)?

Acho que nunca pensei nesses termos, mas o que me veio à mente como utopia foi: sobreviver de escrita. É um ofício cruel, de diversos modos. Condições formais, temáticas, econômicas, raciais, socioculturais, de gênero(s), de geografias, de opções e demandas. Acho que não tenho um sonho maior, talvez vários.

Assunto preferido de escrever?

Isso varia muito. Nos últimos anos, tenho sentido um ímpeto do pensar político. De reconhecer-me nas intersecções, de encontrar o outro, as outras.

Um elogio para sua própria escrita?

Difícil responder tão de dentro. Acho que, pelo tempo que sei que levo trabalhando nisso, diria que as camuflagens da linguagem.

Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos?

Já publiquei livros de poemas. O primeiro foi pequenos mundos caóticos (PUC/Kelps, 2011), depois lâminas (Martelo, 2020) e uma plaquete chamada era uma promessa; era pra cuidar; ela engravidou; ela se perdeu; (lola frita, 2022). E está no prelo, pela editora Aboio, meu primeiro livro em prosa, um romance.

Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita?

Acho que depende do cotidiano, talvez tudo. Morando no centro de São Paulo, um grande despertador de reflexão é a condição desumana das pessoas em situação de rua e dos dependentes químicos, no que chamam de Cracolândia, ou Centro do Medo, segundo Datena, ou ainda, para muitos moradores, efeito de especulação imobiliária. Já tentei escrever sobre os vários tipos de sentimentos que tenho ou acho que as pessoas têm, mas ainda estou processando essas experiências. O que falamos, o que fazemos, o que somos como humanidade, não sei aonde viemos parar.

Qual dos seus poemas mais te define?

Bem difícil. Não sei se minhas produções literárias realmente me definem. Talvez, lá no fundo, eu ache que a poesia ou a prosa não define ninguém, e talvez mesmo esteja na contramão disso, talvez nem seja esse o campo, enfim. Tergiversando um pouco a pergunta, tem um poema que é uma conjugação de memória, de sensação e de invenção do que acho que foi minha primeira relação com o ato poético. O poema se chama poiesis e está no livro lâminas (Martelo, 2020):

poiesis

enquanto os risos escorriam nos pés
na grama
nos galhos
nos céus
dos outros no tempo
em que sempre voltamos
jamais estaremos

uma criança, longe, muda, exangue, sentada
num canto daquele muro
(como no canto dos outros muros que agora a
derrubam
feito um sino mudo)

nesse canto lhe deram uma rosa
era uma rosa comum, cor-de-rosa, jovem, justa, virgem
não soube o que fazer com tanta verdade
embora sequer soubesse disso
de que agora a memória sabe
do jeito que a memória sabe saber reticente

poderia ter passado a tarde toda
aquela criança
talvez eras
com a rosa nas mãos

poderia dizer do cheiro daquela pétala uma obra aberta
do tônus firme do seu corpo frágil
das inverossimilhanças do contorno
na sua cor silenciosa
dos rosas da rosa

se fosse dizível

mas quando o sol se punha
naquela época

pés sujos
risos suados
cabelos ventados
fôlegos rotos

mas a rosa
intacta
naquelas mãos tão pequenas meu deus e que já sustinham o medo
de ser túmulo

qual teria sido o erro
que cometeram aqueles dedos
incapazes ainda de todo mal que agora teciam tão displicentemente

tomaram-lhe a rosa sem
não foi sequer capaz de
despedaçaram todas as pétalas e sépalas
ouviam-se ranger suas veias
enquanto ensinavam que era assim
que se brincava com as flores

foi a primeira vez para ela
que a poesia
colheu o seu silêncio
humano

Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você?

Não consigo pensar em uma parte fácil. Acho que rememorar, elaborar, refletir, expressar, revisar, escrever, apagar, esquecer, sobreviver, tudo são dificuldades, internas e externas. Escolho trabalhar com as dificuldades da escrita e descobrir em cada um desses processos e produtos suas dificuldades – e, quem sabe, além de sofrer, aprender com elas.

Qual sua obra favorita de outro autor(a)?

Talvez, a narrativa “O oco”, de Hilda Hilst. Não sei se pelo contato muito próximo nos últimos anos, mas, a cada vez que releio essa narrativa ou mesmo trechos dela, fico abismada com o trabalho submerso com a linguagem e curiosíssima com os desconhecidos que ela lacuna.


Um livro de Dheyne de Souza

Nome da obra?

lâminas.

Quando e em qual editora foi publicada?

Publicada em 2020, pela Martelo Casa Editorial, uma editora independente de Goiânia-GO..

Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual?

Eu acho que não existe um tema central. Gosto bastante de trabalhar com metalinguagem e questões político-sociais e feministas, mas não só.

As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso?

Eu não dividi em fases os poemas desse livro. Na verdade, sou péssima para pensar uma história e uma ordem, talvez porque eu considere, ao menos nesse caso, cada poema um universo em si. Estou tentando exercitar isso hoje em dia, mas tenho dificuldades de ordenar. Em lâminas, publicado em 2020, o editor, Miguel Jubé, contribuiu com sugestões para alterar a ordem dos poemas, até porque enviei pra ele em ordem cronológica, que é a que costumo fazer em meus arquivos pessoais. Esse livro reúne poemas de cerca de uma década, entre 2011 e 2020, então muitas temáticas e experimentações formais e linguísticas passaram por mim e por eles. No momento atual, estou trabalhando em um próximo livro de poemas, e neste sim estou procurando exercitar um ordenamento de poemas e de ritmos temáticos, organizados de modo mais consciente das questões políticas, sociais e feministas que o atravessam.

O que te incentivou a escrever esse livro?

Esse livro reuniu alguns dos poemas que escrevi nesse período de quase dez anos, que foi a lacuna temporal desde o livro anterior que havia publicado de forma impressa. Eu não estava pensando em publicar lâminas. Foi conversando com amigos e com o editor que resolvi selecionar os poemas, com ajuda e incentivo deles. Então, foi uma reunião de poemas diversos e, ao mesmo tempo, que testemunham uma década de muitas transformações pessoais e coletivas, sociais e estéticas.

A sequência dos poemas conta alguma história?

Não exatamente. Partindo do que comentei antes, talvez haja um testemunho, em cada poema, de um tempo e de um espaço ao longo de uma década. Mas é só uma interpretação minha, não costumo falar muito disso, gosto mais de ouvir as impressões dos outros.

Existe algum posicionamento político ou cultural na obra?

Sim. E acho que em toda obra há.

Qual a relevância dos personagens implícitos/explícitos da obra?

Em cada poema, acho que há uma história, que depende muito da pessoa que lê, de como chega, bate e reverbera nela. Bom, talvez esse seja um sonho, um desejo, um convite. Dizendo por mim, como leitora da minha própria obra – se for possível pensar nesses termos –, no poema que citei antes, o “poiesis”, a personagem daquela criança traz memórias e ficções muito particulares para mim, mas acho que as imagens ali podem remeter cada um a um canto muito singular da sua infância. Enfim, talvez devesse apenas dizer: os mistérios.

Qual a poesia mais marcante desse livro?

Para mim, acho que a última, “80 tiros”. O próprio título remete a um fato histórico de que trata o poema e que me causou e me causa imensa preocupação, enorme indignação, extrema necessidade de escrever.

80 tiros

80 tiros 80.
do gatilho o estado fardado armado rindo 80
uma família.
um civil negro.
80 tiros.
não era o alvo
foi engano
80 tiros
ensurdecendo o país. o judiciário não
80 tiros. uma pessoa humana, era o princípio da dignidade. fundamental. o judiciário não
80 tiros. garantindo o direito individual, coletivo e social, o judiciário não
80 tiros. crime militar. judiciário 80
como foi o som do primeiro tiro 80?
apologia à tortura 80 ustra 80 o judiciário não
banalização, legitimação, estímulo
80 tiros
e nenhuma palavra sã do executivo
quem executa
o judiciário não pergunta não responde não garante
80 tiros. oitenta.
como foi o som do último tiro 80?
como é o som do judiciário
80
como vamos contar?
80
como vamos seguir?
80
como se judicia
80
judiciário ouça
80 tiros.
arma. flash. fim.
do estado 80
do judiciário 80
do cidadão
80 tiros ultrapassaram a constituição
o juízo
qual foi seu juízo final, cidadão
qual será
80 tiros e nenhuma
80 tiros não foram balas perdidas
que as balas nunca são na verdade perdidas na era da tecnologia legalização morte
80 o porte
a cor da bala é negra 80
80 cápsulas no seu colo, judiciário
conta o seu poder
80 tiros
qual a justiça
estadual, militar, eleitoral, do trabalho, federal,
superior
supremo
socorro
qual o seu papel 80
80 cápsulas
80 tiros
oitenta vezes
oitenta judiciário
oitenta executivo como não lhe cabe juízo de valor 80
quanto vale vida tiro oitenta
legislativo
socorro
o judiciário cala
80 mata
morremos assim na velocidade do tiro
qual o cheiro da pólvora estado?
um tiro mata
oitenta tiros eu não sei contar eu não sei medir eu não sei rezar eu não sei 80
o judiciário sabe.
80 tiros nunca poderão esgotar como
ordem
já podeis da pátria filhos
ver
80 tiros
na área de jurisdição militar
o que significa que
80 repita comigo oitenta não desce oitenta não sai oitenta não dá oitenta tente fugir oitenta pro estado oitenta tenta dizer tenta um murro na parede oitenta vezes tenta oitenta vezes gritar tenta oitenta caracteres oitenta não cabe não sai não engole
80 tiros
do estado
o poder emana do povo 80
80 vezes
oitenta
como incidente lamentável judiciário executivo legislativo foram oitenta tiros do estado
não há incidente a mira é negra
não há lamento a mira 80
medo surpresa ou violenta emoção
80 tiros o que são
o judiciário o que faz
pra quem serve 80
80 quando se diz oitenta
é um som é um número é um fuzil
passando na rua 80
a via é pública
a vida não
a cor o buraco negro oitenta
oitenta clarice oitenta
o que faremos
pra quem pedimos
pra que morremos
80
não cabe num poema não cabe 80 sangra
tenta
80 o som do tiro
80 foi engano
80 rindo
80
rindo
tiro
culatra
pólvora
o estado rindo
ruindo
o judiciário o que
oitenta
somos 80 o que somos somos 80 o que somas não somos 80
o som
o tom
o músico da cor

80

j u d i c i a r o i t e n t a


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