Independência Poética: Dheyne de Souza Lorena Lacerda, 18 de julho de 202322 de novembro de 2024 Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA Poeta de hoje: Dheyne de Souza Dheyne de Souza é poeta, goiana e feminista. Publicou poesia no livro lâminas (Martelo, 2020), além da plaquete era uma promessa; era pra cuidar; ela engravidou; ela se perdeu; (lola frita, 2022). Faz parte de um coletivo de poetas mulheres (@bidecoletivo), com uma antologia a ser lançada em 2023 pela Editora Urutau, selo Hecatombe. Está no prelo, pela editora Aboio, seu primeiro romance. É doutoranda em Literatura Brasileira (USP). Usa a rede social @dheynedesouza. O que te inspirou a começar a escrever? Não me lembro muito bem o que exatamente me moveu a começar a escrever. Talvez tenha sido uma série de circunstâncias, como a vontade de ficar só, a ânsia de inventar mundos e personagens, a curiosidade pelos detalhes do chão. Acho que escrevo desde muito criança, antes mesmo de saber grafar as imaginações. Um pouco aérea, um pouco estranha, um pouco calada, penso que tudo isso foi se misturando entre o que eu parecia, o que eu era e o que venho (sub)vertendo em escrita. Talvez as várias faces e fases do silêncio. Talvez o barulho incontrolável do mundo, das pessoas, das faltas. Tomara que tudo. O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias? Hoje em dia, eu espero. Já houve época em que me desesperava muito por não conseguir escrever, inventava que estava passando por fases, que depois viria uma transformação mirabolante e uma nova vertigem na linguagem. Mas agora entendo que faz parte do processo. Pode ser que, à medida que os anos vão passando, a vida vai se mostrando mais feroz, travando uma luta conosco, nem sempre justa, nem sempre leal, especialmente se somos mulheres. Fico pensando que depende de nós mesmas e de nossas circunstâncias várias, quem sabe, sopesar o que vale a pena. Confesso que, muitas vezes, deixo algumas armas de lado e deito no campo. Recuperar forças, escudos e ânsias. Digo a mim mesma que me tornarei mais inquebrantável. Às vezes funciona Seu maior sonho como escritor(a)? Acho que nunca pensei nesses termos, mas o que me veio à mente como utopia foi: sobreviver de escrita. É um ofício cruel, de diversos modos. Condições formais, temáticas, econômicas, raciais, socioculturais, de gênero(s), de geografias, de opções e demandas. Acho que não tenho um sonho maior, talvez vários. Assunto preferido de escrever? Isso varia muito. Nos últimos anos, tenho sentido um ímpeto do pensar político. De reconhecer-me nas intersecções, de encontrar o outro, as outras. Um elogio para sua própria escrita? Difícil responder tão de dentro. Acho que, pelo tempo que sei que levo trabalhando nisso, diria que as camuflagens da linguagem. Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos? Já publiquei livros de poemas. O primeiro foi pequenos mundos caóticos (PUC/Kelps, 2011), depois lâminas (Martelo, 2020) e uma plaquete chamada era uma promessa; era pra cuidar; ela engravidou; ela se perdeu; (lola frita, 2022). E está no prelo, pela editora Aboio, meu primeiro livro em prosa, um romance. Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita? Acho que depende do cotidiano, talvez tudo. Morando no centro de São Paulo, um grande despertador de reflexão é a condição desumana das pessoas em situação de rua e dos dependentes químicos, no que chamam de Cracolândia, ou Centro do Medo, segundo Datena, ou ainda, para muitos moradores, efeito de especulação imobiliária. Já tentei escrever sobre os vários tipos de sentimentos que tenho ou acho que as pessoas têm, mas ainda estou processando essas experiências. O que falamos, o que fazemos, o que somos como humanidade, não sei aonde viemos parar. Qual dos seus poemas mais te define? Bem difícil. Não sei se minhas produções literárias realmente me definem. Talvez, lá no fundo, eu ache que a poesia ou a prosa não define ninguém, e talvez mesmo esteja na contramão disso, talvez nem seja esse o campo, enfim. Tergiversando um pouco a pergunta, tem um poema que é uma conjugação de memória, de sensação e de invenção do que acho que foi minha primeira relação com o ato poético. O poema se chama poiesis e está no livro lâminas (Martelo, 2020): poiesis enquanto os risos escorriam nos pésna gramanos galhosnos céusdos outros no tempoem que sempre voltamosjamais estaremos uma criança, longe, muda, exangue, sentadanum canto daquele muro(como no canto dos outros muros que agora aderrubamfeito um sino mudo) nesse canto lhe deram uma rosaera uma rosa comum, cor-de-rosa, jovem, justa, virgemnão soube o que fazer com tanta verdadeembora sequer soubesse dissode que agora a memória sabedo jeito que a memória sabe saber reticente poderia ter passado a tarde todaaquela criançatalvez erascom a rosa nas mãos poderia dizer do cheiro daquela pétala uma obra abertado tônus firme do seu corpo frágildas inverossimilhanças do contornona sua cor silenciosados rosas da rosa se fosse dizível mas quando o sol se punhanaquela época pés sujosrisos suadoscabelos ventadosfôlegos rotos mas a rosaintactanaquelas mãos tão pequenas meu deus e que já sustinham o medode ser túmulo qual teria sido o erroque cometeram aqueles dedosincapazes ainda de todo mal que agora teciam tão displicentemente tomaram-lhe a rosa semnão foi sequer capaz dedespedaçaram todas as pétalas e sépalasouviam-se ranger suas veiasenquanto ensinavam que era assimque se brincava com as flores foi a primeira vez para elaque a poesiacolheu o seu silênciohumano Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você? Não consigo pensar em uma parte fácil. Acho que rememorar, elaborar, refletir, expressar, revisar, escrever, apagar, esquecer, sobreviver, tudo são dificuldades, internas e externas. Escolho trabalhar com as dificuldades da escrita e descobrir em cada um desses processos e produtos suas dificuldades – e, quem sabe, além de sofrer, aprender com elas. Qual sua obra favorita de outro autor(a)? Talvez, a narrativa “O oco”, de Hilda Hilst. Não sei se pelo contato muito próximo nos últimos anos, mas, a cada vez que releio essa narrativa ou mesmo trechos dela, fico abismada com o trabalho submerso com a linguagem e curiosíssima com os desconhecidos que ela lacuna. Um livro de Dheyne de Souza Nome da obra? lâminas. Quando e em qual editora foi publicada? Publicada em 2020, pela Martelo Casa Editorial, uma editora independente de Goiânia-GO.. Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual? Eu acho que não existe um tema central. Gosto bastante de trabalhar com metalinguagem e questões político-sociais e feministas, mas não só. As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso? Eu não dividi em fases os poemas desse livro. Na verdade, sou péssima para pensar uma história e uma ordem, talvez porque eu considere, ao menos nesse caso, cada poema um universo em si. Estou tentando exercitar isso hoje em dia, mas tenho dificuldades de ordenar. Em lâminas, publicado em 2020, o editor, Miguel Jubé, contribuiu com sugestões para alterar a ordem dos poemas, até porque enviei pra ele em ordem cronológica, que é a que costumo fazer em meus arquivos pessoais. Esse livro reúne poemas de cerca de uma década, entre 2011 e 2020, então muitas temáticas e experimentações formais e linguísticas passaram por mim e por eles. No momento atual, estou trabalhando em um próximo livro de poemas, e neste sim estou procurando exercitar um ordenamento de poemas e de ritmos temáticos, organizados de modo mais consciente das questões políticas, sociais e feministas que o atravessam. O que te incentivou a escrever esse livro? Esse livro reuniu alguns dos poemas que escrevi nesse período de quase dez anos, que foi a lacuna temporal desde o livro anterior que havia publicado de forma impressa. Eu não estava pensando em publicar lâminas. Foi conversando com amigos e com o editor que resolvi selecionar os poemas, com ajuda e incentivo deles. Então, foi uma reunião de poemas diversos e, ao mesmo tempo, que testemunham uma década de muitas transformações pessoais e coletivas, sociais e estéticas. A sequência dos poemas conta alguma história? Não exatamente. Partindo do que comentei antes, talvez haja um testemunho, em cada poema, de um tempo e de um espaço ao longo de uma década. Mas é só uma interpretação minha, não costumo falar muito disso, gosto mais de ouvir as impressões dos outros. Existe algum posicionamento político ou cultural na obra? Sim. E acho que em toda obra há. Qual a relevância dos personagens implícitos/explícitos da obra? Em cada poema, acho que há uma história, que depende muito da pessoa que lê, de como chega, bate e reverbera nela. Bom, talvez esse seja um sonho, um desejo, um convite. Dizendo por mim, como leitora da minha própria obra – se for possível pensar nesses termos –, no poema que citei antes, o “poiesis”, a personagem daquela criança traz memórias e ficções muito particulares para mim, mas acho que as imagens ali podem remeter cada um a um canto muito singular da sua infância. Enfim, talvez devesse apenas dizer: os mistérios. Qual a poesia mais marcante desse livro? Para mim, acho que a última, “80 tiros”. O próprio título remete a um fato histórico de que trata o poema e que me causou e me causa imensa preocupação, enorme indignação, extrema necessidade de escrever. 80 tiros 80 tiros 80.do gatilho o estado fardado armado rindo 80uma família.um civil negro.80 tiros.não era o alvofoi engano80 tirosensurdecendo o país. o judiciário não80 tiros. uma pessoa humana, era o princípio da dignidade. fundamental. o judiciário não80 tiros. garantindo o direito individual, coletivo e social, o judiciário não80 tiros. crime militar. judiciário 80como foi o som do primeiro tiro 80?apologia à tortura 80 ustra 80 o judiciário nãobanalização, legitimação, estímulo80 tirose nenhuma palavra sã do executivoquem executao judiciário não pergunta não responde não garante80 tiros. oitenta.como foi o som do último tiro 80?como é o som do judiciário80como vamos contar?80como vamos seguir?80como se judicia80judiciário ouça80 tiros.arma. flash. fim.do estado 80do judiciário 80do cidadão80 tiros ultrapassaram a constituiçãoo juízoqual foi seu juízo final, cidadãoqual será80 tiros e nenhuma80 tiros não foram balas perdidasque as balas nunca são na verdade perdidas na era da tecnologia legalização morte80 o portea cor da bala é negra 8080 cápsulas no seu colo, judiciárioconta o seu poder80 tirosqual a justiçaestadual, militar, eleitoral, do trabalho, federal,superiorsupremosocorroqual o seu papel 8080 cápsulas80 tirosoitenta vezesoitenta judiciáriooitenta executivo como não lhe cabe juízo de valor 80quanto vale vida tiro oitentalegislativosocorroo judiciário cala80 matamorremos assim na velocidade do tiroqual o cheiro da pólvora estado?um tiro mataoitenta tiros eu não sei contar eu não sei medir eu não sei rezar eu não sei 80o judiciário sabe.80 tiros nunca poderão esgotar comoordemjá podeis da pátria filhosver80 tirosna área de jurisdição militaro que significa que80 repita comigo oitenta não desce oitenta não sai oitenta não dá oitenta tente fugir oitenta pro estado oitenta tenta dizer tenta um murro na parede oitenta vezes tenta oitenta vezes gritar tenta oitenta caracteres oitenta não cabe não sai não engole80 tirosdo estadoo poder emana do povo 8080 vezesoitentacomo incidente lamentável judiciário executivo legislativo foram oitenta tiros do estadonão há incidente a mira é negranão há lamento a mira 80medo surpresa ou violenta emoção80 tiros o que sãoo judiciário o que fazpra quem serve 8080 quando se diz oitentaé um som é um número é um fuzilpassando na rua 80a via é públicaa vida nãoa cor o buraco negro oitentaoitenta clarice oitentao que faremospra quem pedimospra que morremos80não cabe num poema não cabe 80 sangratenta80 o som do tiro80 foi engano80 rindo80rindotiroculatrapólvorao estado rindoruindoo judiciário o queoitentasomos 80 o que somos somos 80 o que somas não somos 80o somo tomo músico da cor 80 j u d i c i a r o i t e n t a Entrevista Independência PoéticaLeituraPoesia
Lorena, agradeço imensamente a gentileza do convite. Foi um prazer enorme partilhar contigo impressões de escrita e vida. Grande abraço! Dheyne Responder