Os sons da feira central de Campina Grande Revista Kuruma'tá, 7 de agosto de 201930 de dezembro de 2019 Texto de Toinho Castro Feira central de Campina Grande. Foto de Kyller Costa Gorgônio O poeta Braulio Tavares contou-me essa história, que ele já ouviu de alguém. A música tocando em casa, na sala, aí o filho pequeno olha pro pai e pergunta onde tá a música. O pai responde que a música tá ali na sala, tocando. Sem entender o menino insiste: Mas pra onde eu olho? Pra lugar nenhum, responde o pai. Não tem pra onde olhar; a música é pra ouvir. A versão contada na mesa do bar pelo poeta, com seu gestual, as pausas e intensidades, era mais interessante, mas creio que pude transmitir a ideia central, de uma geração que parece crescer com a ideia de a música está sempre associada às imagens. Podemos pensar facilmente que tudo isso começa com o videoclip, com a MTV, mas nos anos setenta e imagem já acompanhava poderosamente a música pop. Os concertos, por exemplo, ficavam esteticamente cada vez mais elaborados, na medida em que as tecnologias cenográficas avançavam e os orçamentos das grandes bandas alcançavam patamares nunca vistos. Como pensar o Pink Floyd sem a exuberância visual dos seus shows, ou mesmo das capas dos seus discos? Ou a imagem em branco & preto de Elvis na TV, maior talvez que sua música. Música e imagem. Parece que foram feitos um para o outro. Parece que foram se buscando enquanto se desenvolviam e se espalhavam pelo mundo. Nós mesmos buscamos essa associação o tempo inteiro. Colocar o fone de ouvido ligado no Spotify e caminhar pela rua, quase como se tivéssemos uma trilha sonora para a nossa passagem pelo mundo. E com isso anular os sons do mundo. Mesmo quando não há telas, seja de cinemas ou de celulares, ainda procuramos formar imagens na mente enquanto escutamos uma canção. Será que foi o mercado que fez isso com a gente? Será que é porque assim se ganha mais dinheiro? Como escutar sem ver? Como dissociar sons e imagens? O sons são entidades autossuficientes que podem dispensar representações gráficas. Naturalmente, por obra de artistas, podem servir a um filme, uma peça de teatro, etc. Mas no fim das contas, todo som é autônomo. Poderoso em si, em seu próprio discurso. Dias depois Braulio, de novo ele, postou na sua rede social essa incrível gravação. Cerca de 6 minutos de áudio gravado na feira central de Campina Grande, sua cidade, na Paraíba. A gravação é um trabalho maravilhoso de Orlando Freitas, que nos mergulha no burburinho das falas populares, dos pregões, dos passos e ruídos e músicas esparsas. Sons que emergem e submergem em meio a outros sons. Há uma cadência, um jogo de volumes e tons… E lá está a feira. Sentimos o poder imenso dos sons, sua capacidade de revelar-nos o mundo. Música para os ouvidos, diriam uns. Outros, que isso não é música. Impossível não recordar de um vídeo que vi., com o músico e escritor americano John Cage. Sempre que penso sobre música ou sons, John Cage me vem à cabeça. Certamente pelo seu intenso trabalho em discutir o mundo dos sons e propor caminhos, por meio de suas composições musicais ou escritos. Mal ouvi esse áudio da feira de Campina e lembrei desse vídeo. Nele Cage fala sobre música e ruído e silêncio. E eu fico imaginando John Cage na feira de Capina Grande, ou de Caruaru, de olhos fechados, escutando o discurso livre dos sons, sem preocupar-se com idioma sou significados. Apreciando somente esse indizível fluxo sonoro que não traz outra mensagem senão a si mesmo. Quando eu ouço o que chamamos de música, parece-me que alguém está falando e falando sobre seus sentimentos, ou sobre suas idéias de relacionamentos. Mas quando eu ouço o tráfego, o som do tráfego, aqui na 6th Avenue, por exemplo, eu não tenho a sensação de que alguém está falando. Eu tenho a sensação de que o som está agindo, e eu amo a atividade do som. O que ele faz, é mais volumoso e mais silencioso, e fica mais alto e mais baixo, e fica mais longo e mais curto. E faz tudo isso, o que me deixa completamente satisfeito, não preciso de som que fale comigo. Nós não vemos muita diferença entre tempo e espaço. Não sabemos onde um começa e o outro termina. De maneira que a maioria das artes nós pensamos como sendo no tempo, e a maioria das artes que pensamos como sendo no espaço. Marcel Duchamp, por exemplo, começou a pensar no tempo, quero dizer pensar na música, como sendo não uma arte do tempo, mas uma arte do espaço. E ele fez uma peça chamada Sculpture Musicale, que significa sons diferentes vindos de lugares diferentes e duradouros, produzindo uma escultura que é sonora e que permanece. As pessoas esperam que ouvir seja mais do que ouvir, e às vezes elas falam de “escuta interior” ou “o significado do som”. Quando falo sobre música, finalmente vem à mente das pessoas que estou falando de som que não significa nada, que não é “interior”, mas é apenas “exterior”. E eles dizem, essas pessoas que entendem, finalmente, dizem: “Você quer dizer que são apenas sons?”, Pensando que algo ser apenas um som é ser inútil. Acontece que eu amo sons, assim como eles são, e eu não preciso que eles sejam algo mais do que são. Eu não quero que eles sejam psicológicos, eu não quero que um som finja que é um balde, ou que é presidente, ou que está apaixonado por outro som [risos], eu só quero que seja um som. E eu também não sou tão estúpida. Havia um filósofo alemão, que é muito conhecido, Immanuel Kant, e ele disse que há duas coisas que não têm que significar nada. Uma é música e a outra é risada. [Risos] Não tem que significar nada, isto é, para nos dar um prazer muito profundo. Você sabe disso, não sabe? [fala com o gato no colo]. A experiência sonora, que prefiro a todas os outros, é a experiência do silêncio. E o silêncio, quase em todo o mundo agora, é o trânsito. Se você ouvir Beethoven ou Mozart, verá que eles são sempre os mesmos, mas se você ouvir o tráfego, verá que é sempre diferente. John Cage (Tradução livre, feita a partir do Google translate) Em muitas culturas, o som, ou a música, está associada à alguma religiosidade. Repetir o mantra e esvaziar-se de sentido. E no vazio encontrar não significados ou explicações. Encontrar-se. Sem nome, sem origem ou destino. Ser um som. Um som que se basta. Que tem um tom, um timbre, uma duração… e acaba. A foto que ilustra este texto, de Kyller Costa Gorgônio, foi publicada na página do seu autor no Flickr e está sob licença Creative Commons, Attribution-NonCommercial-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-NC-SA 2.0), e não foi produzida para a Revista Kuruma’tá. A Braulio tavaresCampina GrandeJohn CageMemóriaMúsicaParaíbaSilêncioToinho Castro
Fico honrado que este trabalho tenha recebido a atenção e o carinho da revista Kuruma’tá. Espero que possamos continuar a caminhar, mergulhar e por fim juntos vibrar como uma imensa paisagem sonora. Responder