Baú do Braulio: Os Livros Proibidos Revista Kuruma'tá, 20 de setembro de 201930 de dezembro de 2019 Estamos começando hoje na Revista Kuruma’tá uma nova seção, Baú do Braulio, com uma seleção, ou como se diz hoje, uma curadoria de artigos que o poeta Braulio Tavares vem publicando ao longo dos anos no seu blog Mundo Fantasmo. Naturalmente teremos ainda textos inéditos do bardo de Campina Grande aparecendo por aqui, mas desse baú fantástico que é o Mundo Fantasmo, vai sair muita coisa boa pra gente ler na Kuruma’tá! E começamos a empreitada com quatro textos que Braulio publicou em 2011, pela “Banned Books Week”, ou Semana do Livros Banidos, ou censurados, que nesse estranho ano de 2019 começa na semana que vem (22 a 28 de setembro) e que acontece nos Estados Unidos. Trata-se de uma semana dedicada luta contra a censura na literatura. Um tema muito apropriado aos dias de hoje no Brasil. Vamos lá, abrir o Baú do Braulio Texto de Braulio Tavares I Está começando nos EUA a Semana dos Libros Proibidos (“Banned Books Week”), celebrada na última semana do mês de setembro. É uma iniciativa conjunta de associações representando editores, professores, livreiros, bibliotecas e entidades culturais que combatem a censura a obras literárias, desde a proibição pura e simples até a sua retirada de currículos e do acervo de bibliotecas. Eu nunca tive um livro proibido pela censura. Tive uma música (“Nordeste Independente”, composta com Ivanildo Vila Nova, gravada por Elba Ramalho) que teve sua execução pública proibida durante o último ano da ditadura militar. Mas é como leitor que durante os próximos dias comentarei algumas dessas obras que foram retiradas de circulação, e por que motivos isso aconteceu. Os principais motivos para um livro ser proibido são: 1) conteúdo sexual; 2) cenas de violência ou sadismo; 3) linguagem chocante (não necessariamente palavrões de cunho sexual, mas linguagem considerada agressiva, vulgar, violenta, etc.); 4) cenas envolvendo drogas e parecendo endossar o seu uso; 5) conteúdo racista ou discriminatório contra maiorias; 6) idéias políticas contrárias ao regime vigente; 7) agressões, calúnias ou afirmações graves contra um indivíduo ou grupo. Há outros, com certeza; estou enumerando de memória. As razões mudam de lugar para lugar. A liberdade de literatura é muito parecida com a liberdade de imprensa. Todo mundo é a favor até o instante em que se torna vítima dessa liberdade, até quando surge um livro dizendo algo que nos ofende, nos envergonha ou nos ameaça. Nesse instante, nosso discurso democrático vai dar uma volta no espaço sideral, e a vontade que a gente tem é mandar apreender aquele livro, queimá-lo em praça pública, e premiar o autor com uma surra de fio-desencapado e um banho de sal grosso. Digo isto para lembrar que a luta pela liberdade de expressão não é uma luta do Bem contra o Mal, a luta dos Cem Por Cento Certos contra os Cem Por Cento Errados. É um dilema, uma encruzilhada entre duas opções, ambas envolvendo ganhos numa direção e perdas na outra. Somos contra a proibição de James Joyce ou de Rubem Fonseca, mas aposto que muitos de nós somos a favor da proibição dos livros de Hitler. Cada sociedade se define pelos seus critérios para proibir um livro e ameaçar seu autor, porque ao fazer isto ela atinge um limite de si própria, atinge aquela fronteira ética na qual em nome dos mais elevados valores se cometem os atos mais graves. Somos todos a favor da liberdade de expressão. Mas cada um de nós tem pelo menos um livro que proibiria com prazer e vingança. Bora, rapaz. Fala a verdade. Publicado em Mundo Fantasmo em 24 de setembro de 2011 II A Semana dos Livros Proibidos (última semana de setembro), chama a atenção para o que os organizadores, nos EUA, chamam de “Banned and Challenged Books”. “Banned” é o livro banido, proibido oficialmente por um governo, com todas as consequências (apreensão policial dos exemplares à venda, com prejuízo para o livreiro, etc.). Muitas vezes isto envolve a ameaça à liberdade ou à integridade física do autor ou do editor. “Challenged” significa que o livro é impugnado, questionado, denunciado por grupos ou entidades, sob a alegação de que infringe algum princípio. O número de livros denunciados, claro, é muito maior do que o de livros de fato proibidos, já que nem toda denúncia é aceita. Ainda assim, o estrago é grande, porque a denúncia produz efeitos locais, principalmente no que diz respeito à eliminação de livros das bibliotecas e do currículo escolar de colégios e universidades. Capa de Harry Potter, recriada por M. S. Corley Todo mundo entende que o Minha Luta (“Mein Kampf”) de Hitler seja proibido. O furibundo alemão é o saco-de-pancadas preferencial do Ocidente. A tal ponto, aliás, que por todo lado brotam jovens carrancudos, insatisfeitos, irritados com a hipocrisia da época, e começando a murmurar uns com os outros: “Por que será que proibiram o livro do cara? Vai ver que ele denunciava isso-tudo-que-está-aí… Era um idealista…”. E pronto, a proibição tem um resultado inverso: projeta uma aura de contestação e de martírio sobre a obra de um desorientado. Já os livros de Harry Potter têm sido largamente denunciados nos EUA porque grupos evangélicos de variadas colorações os consideram uma apologia ao satanismo, à magia negra, etc. Se você acha isso absurdo, e que Harry Potter é inofensivo, o que dizer então da denúncia contra a série Capitão Cueca de Dav Pilkey? Sucesso aqui no Brasil, os livrinhos ficaram em sexto lugar na lista de obras mais denunciadas nos EUA em 2002, por “falta de sensibilidade”, por serem “inadequados à faixa etária” e por “encorajarem as crianças a desobedecer as autoridades”. Pois é. Começa com Capitão Cueca, daqui a pouco os meninos vão estar lendo Che Guevara. A denúncia contra Harry Potter, é claro, é proporcional ao seu sucesso. Há incontáveis livros sobre meninos bruxos que entram e saem dos lares e das escolas sem que ninguém lhes dê importância ou os considere Os Evangelhos de Belfegor. Mas os professores não são bobos. Harry Potter foi um movimento social em torno de um livro, um movimento que arrebatou dezenas de milhões de garotos. Ninguém faz sucesso impunemente. Ninguém atinge milhões de pessoas sem que alguma autoridade se debruce sobre o caso, luneta em punho, para saber por quê. Publicado em Mundo Fantasmo em 25 de setembro de 2011 III A Semana dos Livros Proibidos (24-set a 1-out) pretende, entre outras coisas, defender a liberdade de expressão e de publicação de livros. Uma estatística curiosa no saite da American Library Association mostra que da lista dos “100 Romances mais Importantes do Século 20” escolhidos pelo Radcliffe Publishing Course, 46 foram em algum momento proibidos ou denunciados para proibição em algum país. Geralmente por questões morais, porque o livro contém cenas de sexo explícito; ou defende atos sexuais considerados ofensivos (homossexualismo, adultério, promiscuidade, prostituição, masturbação, etc); ou usa linguagem ofensiva, imoral (palavrões, etc.). Esses valores mudam de país para país. O que é pornográfico aqui não o é acolá, então não é de admirar que o Ulisses de Joyce, o Lolita de Nabokov, os Trópicos de Henry Miller e O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence tenham sido proibidos mundo afora, inclusive em seus países de origem. Nenhum desses livros, que eu me lembre foi proibido no Brasil. Eram cercados de tabus e de críticas, mas eram publicados, sim, e ninguém foi preso por vendê-los “por baixo do pano”. Paulo Francis se referia a Lady Chatterley como “o livro que todo mundo leu segurando com uma mão só”. Talvez tenha sido assim para a geração dele; eu me lembro em 1967, no Estadual da Prata, o pessoal com ar conspiratório emprestando uns aos outros o Sexus de Henry Miller e indicando: “Capítulo 16…”. Era em plena ditadura, mas esses livros passavam. A Revolução Sexual estava embranquecendo os cabelos dos nossos pais, mas os pilares da Pátria permaneciam incólumes. A ditadura estava mais preocupada em proibir coisas mais específicas; talvez o Que Fazer? de Lênin ou o Torturas e Torturados de Márcio Moreira Alves. Ninguém lembra Cassandra Rios, que nunca foi grande escritora, mas foi perseguida durante décadas por seus romances eróticos: Tessa, a Gata, A Paranóica, Eudemônia, O Bruxo Espanhol… Li na adolescência (na casa de meus primos) A Lua Escondida, uma história de paixão lésbica; e anos depois li As Mulheres dos Cabelos de Metal, uma ficção científica erótica que passou despercebida até da censura. Quando as pessoas fazem campanha pela liberação da literatura erótica, geralmente estão pensando em Joyce ou Miller. Minha dúvida é: na hora do naufrágio, esses intelectuais teriam coragem de colocar Cassandra Rios no bote salva-vidas? Ou a salvação é apenas para os que são também intelectuais? A arte “redime” o erotismo? É preciso ser uma grande obra literária para que os intelectuais se mobilizem contra sua proibição? Publicado em Mundo Fantasmo em 28 de setembro de 2011 IV Checando as estatísticas de livros denunciados ou proibidos no período 1990-2010 nos Estados Unidos, temos números interessantes. Razão das denúncias: sexo explícito, 3.169; linguagem ofensiva, 2.658; violência, 2.289; livros inadequados para a faixa etária do grupo-alvo, 2.232. Drogas? Lá embaixo na lista, com 382. Política? Idem, com 319. Esses números claramente se referem ao universo escolar, infanto-juvenil, que é onde se exerce o peso da censura e do puritanismo nos EUA. Nesse mesmo período, os números dizem (por ordem decrescente) que a origem das denúncias veio das seguintes instituições: escola, 4.048; biblioteca escolar, 3.659; biblioteca pública, 2.679. Universidades aparecem com apenas 141 denúncias. Nos EUA, existe liberdade para discutir idéias políticas, mas por outro lado o país é vítima de um puritanismo alucinado que cria as situações mais estapafúrdias. Tipo aquelas notícias em que um garoto de seis anos é acusado de assédio sexual porque beijou na escola uma coleguinha de cinco. Os EUA sempre me deram a impressão de um país onde é mais fácil publicar um livro propondo a derrubada do capitalismo do que um livro em que os personagens façam sexo oral. No Brasil, já foram proibidos mais livros pelo seu conteúdo político do que por conteúdo sexual. Dizem que Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca só foi proibido porque um figurão do governo militar se escandalizou com a linguagem e o tema do conto-título (marginais invadem uma festa de reveillon de ricaços, estupram e matam quem bem entendem) e não descansou enquanto o livro não foi proibido. Algo parecido ocorreu com Zero de Ignácio de Loyola Brandão. Não me lembro de livros infantis proibidos pela ditadura. Aqui no Brasil está surgindo uma censura do politicamente correto em que indivíduos ou grupos se julgam insultados porque um personagem de um livro diz alguma ofensa contra eles, e pedem a proibição do livro. É a democratização da censura. Em breve chegaremos ao aperfeiçoamento final desse método, quando qualquer pessoa pode denunciar um livro e solicitar oficialmente sua proibição, alegando que foi prejudicado. As filhas de Garrincha conseguiram proibir a biografia do jogador, escrita por Ruy Castro; Roberto Carlos conseguiu tirar das livrarias sua biografia escrita por Paulo César de Araújo. Ora, há uma porção de livros-de-fofocas e livros maledicentes por aí, sobre gente famosa. Como digo sempre, a liberdade de expressão significa, também, a liberdade de expressão para ao maledicentes – os quais, se for o caso, terão que pagar por isso de alguma forma. Nem toda censura é política, mas toda censura é censura. Publicado em Mundo Fantasmo em 29 de setembro de 2011 A Braulio tavaresCassandra RiosLeituraLiteraturaLivro