Fidalgo + 4 poemas de Jaciara Rosa

Na primeira publicação dessa semana, uma terça-feira em que a primavera ainda cheira a inverno, no levemente frio do Rio de Janeiro, a poesia de Jaciara Rosa, poeta e jornalista que já nos presenteou com seu texto Sobre pedras e rosas, e que muito ainda iluminará as páginas da Revista Kuruma’tá.

Poemas de Jaciara Rosa


Foto de Jaciara Rosa

Viagem que não se sabia nem breve, nem longa

Sejamos únicos, simplesmente nós
Pra fazer jus ao arranjo misterioso dos deuses que provocaram esse encontro.

Agradeçamos com nossas delicadezas e corpos, e velas, incensos, frutas, folhas e flores, oferendas de amores…

A viagem, palavra sua de encaixe perfeito,
que seja fora do tempo conhecido, das conveniências e padrões

Utopia? Que seja.
Ganhamos o presente da reinvenção, isso deve querer dizer algo…

E a mensagem mais preciosa, creio, 
está muito além de um gozo breve.


universo em desencanto

desapaixonei perdidamente
estou em estado de graça com esse feito
mão na luva dentro do meu peito

intensa, sorrio
rendo obrigados
ando flutuando
vi passarinho verde

desapaixonei perdidamente


pausa pro diário

Um dia de ansiedade máxima me renderam até agora:

cinco calcinhas e um biquini lavados
um cachorro imundo de chuva, limpo da lama
dois quadros de fotos pregados na parede, um deles já cheio delas
muitas lembranças, 
um chorinho de autopiedade

muita palpitação e, a ponto de infartar, duas releituras do livro de frases do Quintana
uma ligação pro homem que quero, 
risos nervosos e insegurança e medo
um poema enviado pra ele reconhecendo meu diletantismo nessa conquista

cinco ou mais audições do disco do boca livre de 1980
muitas mensagens escritas e áudios para o melhor amigo
conversas boas com a faxineira
uma coletânea da rita ribeiro enquanto escrevo mais esse texto
um nhoque sem graça
uma laranja cortada em quatro
e, até o meio da tarde, foi assim…

conclusão parcial dos fatos: nos feriados e apaixonada sou muito produtiva.


fidalgo

A ele meu agradecimento
para o todo desse homem saboroso e sutil
fidalgo,
alto,
do alto dos seus novos pelos na cara
solto
debaixo
da sua nova roupa de linho alva

A ele obrigada
pela noite, pelo dia
pelas noites e dias
e manhãs, tardes e madrugadas de toda palavra confessada, ouvida e falada cantada, assobiada
pelo silêncio que já conseguimos ter
pelas notas de sândalo na nuca dele, agradeço

pelas notas que ele toca
pelas notas que ele me toca
ajoelhada, obedeço


Desmedida-mente

o desejo não tinha dúvida
era só uma questão de decidir qual santa
clara?
teresa?

tenho nas coxas marcas leves de dedos que passaram por aqui com vontade
no lençol, o líquido das uvas
negro amor tocando sem parar dentro de mim
a vibração do tesão, da criação, do contato amoroso, da fome,
os toques, texturas, falas, gemidos,
a memória contamina os batimentos. 

ficou a partitura e o pedido preu tocar pra você
pra cantar pra você
achei lindo isso
você divide o palco e isso é raro

ficou o pedido pra te levar no casarão da meditação
ficou muita vontade de estar com você de novo,
de ter mais cuidado, mais silêncio, menos álcool talvez, rs…

me atrapalhei?
será o que ele está pensando?
será que tem vontade de me chamar pra sair logo?
será que vai fazer a sessão de análise primeiro e me convidar depois?
será que vai pirar de medo e sumir?
O que será que será?…

lembranças de muitas palavras, de sabedoria recém-adquirida, ainda tão novinha, frágil… histórias fortes compartilhadas em poucas horas,  álbum de fámilia, que doido, não consegui controlar, fui falando, seu interesse, sua escuta, ele nunca diria que estava chato.
agora sei, a medida é minha
será que dá pra encontrar de novo pra fazer de novo, mas de outro jeito? 

Quero você por ser você
Nome com pedaço de instrumento no meio
Suas cordas, minhas mãos, meus braços
Seus abraços

Foto de Marcelo Nóbrega